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Triste Realidade

A exploração do artista

Pior do que ser explorado por contratantes é um mercado que vem surgindo, dos chamados filmes participativos, onde as pessoas, com ou sem talento, compram o seu personagem no filme

Colunistas  –  02/04/2018 19:44

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(Foto Ilustrativa)

As pessoas não costumam valorizar trabalhos

gratuitos; uma vez feito, dificilmente você conseguirá

negociar bons valores posteriormente; às vezes não

conseguirá negociar valor nenhum

 

Todos nós nascemos com características específicas que nos abrem caminhos para que formemos nossa personalidade e identifiquemos nossa vocação; quando não as herdamos por hereditariedade, são nos ensinadas ao longo do nosso percurso. Às características herdadas por hereditariedade, costumamos dar o nome de dom. Já o talento podemos dizer que é uma vocação que pode vir após o nascimento e ser adquirido com disciplina, treino e muita perseverança. Mas nenhum dos dois nos vem de graça.

Embora o dom seja um presente, já que a pessoa nasce com facilidade para desempenhar com maestria uma determinada tarefa, tê-lo não elimina a necessidade de lapidá-lo. E toda lapidação tem custo financeiro e de tempo; depois a prática constante, pois é com a prática que o tiraremos da invisibilidade. Todos nós nascemos com dom para alguma coisa, mas às vezes o deixamos adormecido e vamos buscar desenvolver talento em outras atividades das quais empenhamos também custo e tempo, com disciplina, esforço, estudo e treino.

Todos são remunerados pelos seus dons ou talentos, mas no caso do artista parece que há uma mentalidade diferente quando se trata de remunerá-lo pelo seu trabalho. São poucos os que conseguem viver da sua arte; não há espaço para todos. É como se o artista tivesse nascido fora da caixa. O artista gasta tempo e dinheiro para se preparar: cursos, workshops, oficinas... E não são baratos. São anos de estudo e, no entanto, a maioria dos contratantes quer que ele faça seu trabalho gratuitamente. Além do tempo e dinheiro, ele gasta também energia na sua criação, entretanto, as pessoas não veem isso como profissionalismo. Elas não trabalham grátis, mas querem gratuidade no trabalho dos artistas. Na verdade, estão colocando os custos nas costas do artista. Algumas pessoas oferecem valores que não condizem com a realidade do mercado; se o artista aceita, estará diminuindo o valor do seu trabalho, até que chega um momento (que já chegou para a maioria), em que só lhes oferecem trabalhos não remunerados.

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Pior e mais humilhante ainda é que na maioria das vezes essas propostas “exploratórias” que nos remete a uma situação de escravidão moderna vem acompanhada de frases do tipo: “Você estará fazendo seu nome no mercado”, que deixa bem claro que eles é que estão fazendo um favor para o artista. É incrível.

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Quem trabalha de graça nunca é tido como profissional no mercado aos olhos das pessoas. Quando tiverem que contratar alguém para pagar, com certeza não será aquele que trabalhou pra ele de forma gratuita. Isso tem acontecido muito com músicos e atores, principalmente. Ninguém vê que você tem um custo para sair de casa com combustível, figurino, desgaste físico e mental, gasto de vida útil dos equipamentos e até quebra dos mesmos. Trabalhar de graça é também um pouco como tirar a oportunidade de ganha pão de outros profissionais do mercado que não têm outra forma de sobreviver. As pessoas não costumam valorizar trabalhos gratuitos. Uma vez feito, dificilmente você conseguirá negociar bons valores posteriormente. Às vezes não conseguirá negociar valor nenhum.

Até trabalhos gratuitos para algumas instituições sem fins lucrativos devem ser avaliados, pois algumas têm sim recurso para pagar, pois o fato de serem instituições sem fins lucrativos não quer dizer que não tenham recursos próprios ou verbas estaduais ou federais. No caso do artista, não dá para fazer o bem sem olhar a quem. Se for um trabalho que vai te servir de portfolio, pode valer a pena, mas lembre-se: Você pode fazer seu portfolio para organizações que realmente precisam de gratuidade. Há casos que são inevitáveis trabalhar de graça, mas ainda assim temos que ter o cuidado de não estarmos sendo explorados, por exemplo, impondo alguns limites em relação ao horário, liberdade de criação etc.

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O mais triste ainda, o mais desumano e cruel, é ver artistas explorando artistas. Temos visto muito o próprio artista explorando o companheiro de profissão. Ele é pago para um trabalho, mas quer que a equipe faça de forma gratuita, chegando muitas das vezes até a mentir dizendo que também está fazendo no “0800”.

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Pior ainda é um mercado que vem surgindo, dos chamados “filmes participativos”, onde as pessoas, com ou sem talento, “compram” o seu personagem no filme. Tenha cuidado. Nem sempre essas pessoas estão sem recursos para fazerem esses filmes. Muitas das vezes são filmes agraciados por alguma lei de incentivo, seja municipal ou federal, e a pessoa resolve simplesmente que quer ganhar um dinheiro a mais, e se aproveita da paixão que o profissional tem pelo ofício ou de pessoas que sonham com seus quinze, vinte minutos de fama.

Outra situação é quando a pessoa diz que o projeto foi aprovado pela lei de incentivo, mas o recurso ainda não saiu e oferece percentual de bilheteria dizendo que todos lucrarão, caso dê certo. Tenha certeza de que não dará certo. A produção vai usar a bilheteria para os gastos dela primeiro, principalmente para pagar, entre outros, direito autoral, a SBAT, o teatro, que está pela beira da morte... Depois, e só depois, se sobrar (e nunca sobra), dividirá com a equipe de cena. Os atores sempre ficam por último. Até num projeto agraciado por lei de incentivo, primeiro vem figurino, diretores e equipe técnica qualificada (bem pagos, por sinal), cenário, publicidade... E os atores ficam com um percentual do que sobrar.

Precisamos nos unir em prol da valorização do mercado; fomentar discussões profundas sobre essa realidade que nós mesmos ajudamos a criar. Desmistificar isso. Então, amigos artistas, muito cuidado ao fazer o bem sem olhar a quem, porque muitas das vezes é você quem precisa desse bem. Você também come, bebe, tem contas para pagar e ninguém te dá gratuidade nem nas necessidades básicas. Seu trabalho tem valor. Se você não o valorizar, ninguém mais o fará.

Há uma célebre e antiga frase de Cacilda Becker que diz: “Não me peça para dar de graça a única coisa que tenho para vender”. Cacilda morreu em 1969, e a frase dela comprova que a situação do artista em relação à sua remuneração é histórica. Pergunto: Até quando continuaremos a permitir que façam isso conosco? Ou acordamos e lutamos para dar uma virada nisso, ou deixamos o país sem arte. A escolha é nossa!

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Por Rita Procópio  –  ritafprocopio@hotmail.com

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