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Um tesouro musical

Aquela música que pode não ser agradável para nós é a imagem do gosto profundo e da escolha perfeita de um universo musical; as nossas escolhas, no fundo, revelam nossos tesouros; nosso gosto individual revela nossos tesouros internos

Música  –  19/05/2017 13:36

Publicada: 28/04/2017 (11:50:10) . Atualizada: 19/05/2017 (13:36:42)

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", assinadas pelo músico Ricardo Yabrudi

Um tesouro é o que está escondido, para seu uso futuro. É um artefato ou acúmulo que se esconde propositalmente, para um fim, que só sabe quem o esconde. Alguns amigos nossos (os que nos fazem bem), às vezes, são protegidos por nós de alguma pessoa que poderia estragar a nossa amizade. Nossas amizades são tesouros que às vezes guardamos por egoísmo nosso. Uma toalha bordada a mão por algum ente querido, por exemplo, torna-se às vezes um tesouro, e evitamos sujá-la de feijão ou molho de tomate. Nós a guardamos como um símbolo saudosista de uma geração não presente. Aquela canção, no caso da música, quando simboliza o amor entre duas pessoas, pode soar piegas, entretanto, geralmente não revelada pelo casal, torna-se o hino abscôndito de um amor oculto - esses se tornam crianças quando se encontram e ouvem sua canção predileta. Essa canção seria o tesouro escondido pelos amantes, ela sela laços que devem ser guardados; é uma espécie de “senha” para as emoções e lembranças de momentos que não deveriam ser “compartilhados” por mais ninguém, a não ser por eles.

Pares comentam: “essa é a nossa música”; apoderam-se delas como se fossem elas os autores. O compositor nem sabe que alguém clama por sua autoria ou pelo domínio único e exclusivo, para uso e efetivação de um romance único. O tesouro é usado, mesmo que não seja nosso. Ele é um símbolo, um signo usado pelo público, e apodera-se dele como sua propriedade. Esse é um dos fundamentos das composições e letras para músicas, onde o compositor às vezes finge que a composição poderia pertencer ao ouvinte emprestando-lhe a autoria numa simbiose onde o marketing fica feliz; sabendo ele, o compositor que a canção nunca será de ninguém de verdade, porém sua, como uma estratégia para conquistar seu público. Camufla-se aí um jogo que o compositor finge que a composição passa a não pertencer a ele assim que é colocada na mídia e por outro lado o público se apodera do que não é seu, escondendo a canção como um tesouro guardado a dois. Fica registrado, consequentemente, que essa estratégia não lesa nenhum lado específico, nem do criador nem quem a usufrui.

A música em si, não fica atrás, porque canções em outros idiomas são cantaroladas pelos amantes, sem que estes saibam o que estão dizendo, por não compreenderem, por exemplo, canções com letras em inglês. Porém, o conteúdo literário fala muito alto, frases de algumas composições concentram e descrevem fases e momentos da trajetória e história do casal ou de amigos. Quem nunca se emocionou com a frase: “Amigo é coisa pra se guardar dentro do peito”, em “Canção da América”? 

Lágrimas são jorradas todos os dias por sentenças bem elaboradas por mestres da emoção. Cabe inferir se foram propositais ou se saíram de dentro da alma do compositor ou letrista. Quem saberá? As intenções serão secretas, a menos que o próprio compositor as revele em suas memórias ou em uma simples entrevista. Ouvi dizer por um jornalista amigo de Nelson Rodrigues, em uma entrevista televisiva que disse que esse dramaturgo escrevia daquela forma tão realista e chocante porque fazia “sucesso” com a realidade crua que propunha. Quem saberá a verdade? É inútil, aprofundar os “por quês”, porém, sim, indagar “para quem” e “por quem” foi dito. Nelson tinha aspiração ou inspiração nietzschiana, isso bastaria. Viver a dor da vida como descrita nas tragédias gregas pré-socráticas seria o bastante, pois a virtude e a felicidade nunca irão muito longe quando a vida nos ensina a aceitar a dor e o ódio momentâneos.

Talvez um tesouro seja enterrado para gerações futuras. Algumas declarações de grandes pensadores só são reveladas “post mortem” (depois de sua morte), para que não tenha se comprometido em vida com alguma declaração. Algumas cartas de despedida em cujo teor estará selado o fim de um relacionamento são lidas quando uma das partes do casal já sumiu e desapareceu. Quantas canções e poesias devem ter sido feitas e não foram ouvidas por quem foi a inspiração para o poeta. Geralmente os amantes guardam segredos, principalmente quando se separam. Poesias e letras de música ficam guardadas no fundo dos armários. Depois de décadas, quando lidas soam vazias, talvez soem música de lamentos, sofrimentos e paixão. Por que será que os túmulos faraônicos eram projetados para não serem profanados? Talvez pelo simples motivo que depois do fim do relacionamento com a vida terrena o relacionamento deveria continuar com a outra vida de além-túmulo. Não era à toa que enterravam os faraós com alimentos. Não tenho dúvida de que assim que se selava a tumba ninguém mais poderia abri-la porque o tesouro, inclusive com as joias reais, não iriam mais ser usadas neste mundo. Assim são canções: tesouro que podem ser usadas num futuro ou na eternidade.

Alguns tesouros, entretanto, podem ser mostrados de vez em quando; é o caso do uso de joias em ocasiões importantes. Na música, o hino nacional é um tesouro guardado para ocasiões importantes, não devendo ser tocado sem que haja uma comemoração oficial. Existem inclusive regras de cerimonial para o seu uso perfeito e sua audição formal.

Existem tesouros musicais para o uso do dia a dia, como se fosse um hino individual, como trombetas reais que anunciam a identidade de um indivíduo.

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O toque de chamada de celulares quando ligamos para alguém é o ingresso para o mundo para quem nós ligamos.

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Aquela música que pode não ser agradável para nós é a imagem do gosto profundo e da escolha perfeita de um universo musical. As nossas escolhas, no fundo, revelam nossos tesouros. Nosso gosto individual revela nossos tesouros internos. Por isso, é comum vermos ciúmes de alguma pessoa que não é do nosso convívio em se apropriar de nosso gosto mais íntimo, pois pensamos que aquela obra musical nos pertence. Por outro lado, quando amantes gostam da mesma música eles compartilham e dividem aquele tesouro com prazer porque é justamente aquela música um elo entre pessoas; uma corrente, um grilhão invisível que só enxerga quem o sente e o vê.

A música é um grande tesouro, principalmente, porque não podemos pegá-la porque é “imaterial”. Melhor assim, porque se torna um símbolo e não uma propriedade. Os sons são tesouros que guardaremos sempre enquanto vivermos. A imagem e lembrança do som de um choro de um filho bebê são inesquecíveis, assim como a vozinha fina e doce quando são crianças. Quando acessamos vídeos do passado dos entes que se foram ou de nossos filhos ou parentes desenterramos tesouros e nos emocionamos. A música e os sons são tesouros; não importa sua forma perfeita estética. Sons de sino de uma igreja são tesouros, assim como um louvor a Deus, assim como uma frase amiga de consolo. Estamos acostumados a dizer que música é o que ouvimos com harmonia, melodia e ritmo, entretanto, isso é uma falácia. Música é tudo o que se ouve, incluindo os sons da natureza e a fala humana. Música são tesouros e sons que nos emocionam porque estão guardados num canto onde mora a emoção e não a razão. Os cartesianismos caminham rumo ao desencontro com a música e os tesouros só existem porque só os indivíduos sabem quem são eles.

Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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