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Cânones Estéticos

A música simples e a música complexa

Não seria de bom tom rotular de erudito e popular o fenômeno musical, pois qualquer ato no denegrir imagens artísticas musicais humanas satisfaz apenas o ego de quem quer estar separado

Música  –  22/03/2018 12:41

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Poderíamos chamar de música simples aquela com melodia fácil e evidente, talvez com uma harmonia simples, seja aquela com “três acordes” como se diz popularmente. Quem aprende a tocar violão sabe que com esses três acordes se acompanha quase toda a música popular mundial, talvez com exceção da música oriental.

Simples seria, talvez, uma música com letra que fala de amor e no final dá tudo certo. Poéticas adocicadas por verdades morais tradicionalizantes são alimento para a alma dos amantes que preconizam a paz e o sossego numa relação amorosa.

A música complexa talvez fosse aquela de difícil “digestão”, talvez falando do final de um relacionamento sem volta com tédio e tristeza; teríamos, pois, que “ruminá-la”, até que pudéssemos compreender cada frase musical e literária, e depois do todo e as partes bem entendidas passaríamos ao estágio do deleite e à satisfação que o entendimento propicia. Geralmente não gostamos do que não entendemos. Uma aula que não pudemos aprender nós a rotulamos de “chata”, ou enfadonha, ou tecemos o seguinte comentário, talvez por despeito: “O que farei com esse conhecimento?”. Na verdade, geralmente quem faz esse tipo de comentário é porque não entendeu a aula, porém, gostaria de ter entendido, sorvendo a informação e seus dividendos; “o saber”. Uma pregação religiosa complexa se torna martírio para os ouvidos dos fiéis, que se tornam dispersos, olhando para as paredes, à espera do fim do culto. Essa atitude natural de quem não entende não é um desdém, porém, um abandono de “causa”. Nada mais natural que quando alguém fala uma língua estrangeira ao nosso lado, na qual não conseguimos compreender, nos desligamos da conversa. Na música funciona da mesma forma. Quando principalmente a harmonia é complexa, não conseguimos saborear seu colorido. Os acordes muito alterados do jazz criam uma atmosfera harmônica sempre diferente, audaz e nova, mesmo para quem está acostumado. Para ouvir esse tipo de música são necessários alguns quesitos básicos, inclusive o estudo de harmonia. É por isso que o jazz não possui a difusão de uma música popular menos elaborada (é necessário estudo antes de ouvir).

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Como a música geralmente não exige nenhum curso, porque é diletante, o ouvinte apreciador comum não tem obrigação de estudar para ouvir nada. A arte racional, ou melhor, aquela arte que exige uma reflexão mais profunda e estudos elaborados, é uma qualidade a mais apenas e não o pilar da estética.

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A música como qualquer arte também segue alguns cânones estéticos da culinária, por exemplo. Uma música elaborada como o jazz teria mais temperos. A nouvelle cuisine, e a cozinha contemporânea são exemplos de uma elaboração complexa de temperos exóticos e misturas inusitadas. No cardápio do Il Bule, já se serviu “orelhas de lebre ao mel”. Com a música não é diferente, as harmonias e melodias são propostas e o sabor quase sempre diferente encontra um bloqueio na compreensão. Só será satisfeito nosso apetite quando uma nova sinapse for efetivada. Aprender é repetir para que uma sinapse responda pelo nosso novo aprendizado. Sabores estranhos à nossa experiência, tanto no culinário quanto no musical, dependerão da compreensão. Por esse motivo as canções simples têm fácil assimilação, porque possuem harmonia já compreendida e decifrada por nossos cérebros. Aqueles “três acordes” suavizam a compreensão da nova música. Na média, quanto mais simples, mais rápido a compreensão e o deleite. O ser humano necessita de alimentos de fácil digestão, por exemplo, o açúcar começa sua digestão na boca com a amilase. Na música não poderia ser diferente. Nossa amilase musical talvez fosse os nossos três acordes básicos.

A música simples e a complexa irão inevitavelmente ser servidas em seu cardápio, pelo folclore, com suas cantigas, as canções populares como o samba etc., até o extremo, com as sinfonias e o jazz. Pelo foco simplório do folclore estaremos muito bem servidos, porque foi com esse material que Villa-Lobos compôs suas cirandas para piano.

A questão do simples e do complexo não deveria afetar nossa apreciação estética, consequentemente a “catarse”. Entretanto, não seria de bom tom rotular de erudito e popular o fenômeno musical, pois qualquer ato no denegrir imagens artísticas musicais humanas satisfaz apenas o ego de quem quer estar “separado”, porém, a cultura sempre deveria ser vista em “bloco”. Esses dicotomismos ou dualismos só fazem crescer um separatismo, sectarismo na arte e nas suas expressões mais naturais. Esse fenômeno comum de se formar nichos e reclusões nos adventos humanos é típico do homem, que deseja profundamente viver em sociedade, todavia, se considerar “uno” e destacado, de gosto privativo, incomum, raro e exótico quando quer se separar do comum é se considerar não simples e não popular. Essa questão não é apenas filosófica, contudo, especializadamente estética. É ela quem ditaria as regras desse jogo entre o simples e o complexo, entre o popular e o erudito.

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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