(Foto Ilustrativa)
Nossas caixinhas musicais (caixas menores dentro da grande caixa do desejo) não são como aquelas de música; são caixas de poder de um império, onde as mídias nos sufocam e ideologicamente nos conduzem a um gosto coletivo
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Os compartimentos são usados para guardar alguma coisa, depois usá-los. Há quem guarde algo e nunca mais abre o que guardou, num futuro é descoberto por algum familiar depois de sua morte. Existem compartimentos que abrimos todos os dias. Existem compartimentos materiais e imateriais, caixas onde guardamos nossos biscoitos da carne, biscoitos do espírito. Da carne, nossos biscoitos que compramos no supermercado, do espírito, a arte. Esta última caixa está bem armazenada na nossa prateleira do desejo. É nossa Caixa de Pandora. Abri-la ou não, fará parte da nossa vontade e sua deliberação: no uso e no consumo do conteúdo das mesmas.
Nossas caixinhas musicais (caixas menores dentro da grande caixa do desejo) não são como aquelas de música, com uma bailarina em cima rodopiando, incitando nosso sono, mas caixas de poder de um império, onde as mídias nos sufocam e ideologicamente nos conduzem a um gosto coletivo. Alguns (estamos falando dos artistas e filósofos), afortunadamente, possuem mais liberdade detendo caixas de espírito livre, não se moldando a nenhuma ideologia, contudo, se servindo do cardápio das mídias mais refinadas como inspiração; ideias que vêm dos elementos da cultura em que se vive.
Esses compartimentos é o que chamaríamos de estilo. Poderá ser um estilo individual, um movimento solitário, ou uma associação com alguns colegas artistas. Nesta última sociedade poderíamos chamar de: uma ação reativa de espírito gregário. Na vertente individual, algum artista poderá criar uma nova direção, criando um novo estilo, que poderá ser identificado no futuro como o embrião de uma nova proposta artística.
Revival, um modismo que ganha força
Neste primeiro caso também, alguns poderão estar retrocedendo na arte num movimento inverso, como um revival, e trazendo a história da música ou da arte para o presente. Este é um modismo que aos poucos vai ganhando terreno e muitos o seguem. No segundo caso, o da ação reativa gregária, vários artistas se juntam para criar um movimento de oposição ao que está estabelecido (este foi, por exemplo, o caso dos impressionistas). Movimentos individuais (o primeiro caso), são muito difíceis de vingar, porque uma avalanche contrária, incluindo aí a inveja de muitos, poderá soterrar, frear ou aniquilar ideias brilhantes. Nietzsche foi sufocado em sua época. Contra a correnteza predominante, suas ideias foram inéditas. Atacou tudo o que vinha antes dele provocando um tsunami nas praias onde a filosofia se bronzeava felizmente, milenarmente, tranquilamente num paraíso Socrático.
Na música quase todas as tentativas individuais de mudar o estilo predominante sofreram represálias. Coitado daquele que sai dos trilhos! Essa arte e essa filosofia estão sempre bombardeando novas ideias. O reconhecimento geralmente vem post mortem. Foi o que aconteceu com grandes artistas como Hieronymus Bosh, Arcimboldo, Van Gogh e Basquiat. Depois de suas mortes, a avalanche que os soterrou se torna um monte sagrado da arte. Não há nada mais verdadeiro que a morte para enobrecer um homem. Foi assim com Jesus, Gandhi, Martin Luther King, que enquanto seus sonhos ainda não se tornavam realidade, no sono de suas mortes a realidade concretizou-se para os homens vivos.
Movimentos coletivos reativos (nosso segundo caso) acontecem pela fraqueza individual. Alguém tem uma ideia de mudança, mas não tem força suficiente para peitar a sociedade crítica. Este líder junta-se com outros para que coletivamente adquiram forças o suficiente para mudar conceitos pré-estabelecidos. Este fenômeno foi postulado por Nietzsche, que chamou de efeito formiga, no qual analogamente estas conseguem num ato coletivo destruir seres maiores que elas. Fenômenos e estilos artísticos reativos na sua maioria nasceram dessa maneira (o impressionismo, a arte brasileira da Semana de 1922, sob o duplo comando de Mário de Andrade e Oswald de Andrade).
Uma trama olímpica
Os estilos musicais existem para acalmar o homem ou excitá-lo. A função da música teve seu ápice na tragédia grega pré-socrática. O coro dionisíaco cantava os versos carregados de metáforas. Contudo, o que transportava a plateia a estados extáticos era a música acompanhada principalmente pela flauta, esse instrumento mágico dionisíaco que tomou o lugar da lira. Foi neste cenário que Esquilo escreveu a tragédia “Prometeu Acorrentado”. Esse mito traz consigo uma trama olímpica, em cujo cenário está presente Pandora.
Na mitologia grega, Pandora, a primeira mulher da humanidade criada por Zeus, casou-se com Epimeteu, irmão de Prometeu. Esta trouxe consigo uma caixa, um presente de Zeus, que em seu interior continha todos os males da humanidade: o ódio, a vingança, a tristeza e muitos outros. A curiosidade de Pandora a fez abrir a caixa liberando todos esses infortúnios e espalhá-los pelo mundo. Foi a vingança de Zeus, por Prometeu ter dado o fogo aos homens. Apenas uma única coisa ficou na caixa, que Pandora não deixou escapar: A esperança.
Os artistas deixaram a esperança escapar
Zeus imaginou, que castigaria a humanidade não deixando escapar a esperança. Os homens privados desse leve, mas poderoso quesito, estariam fadados ao sofrimento frio e constante, sem ter um acalento de que num futuro a dor pelos males passaria. A esperança estaria escondida dos homens, pois Pandora, a primeira mulher, a reteve. Enganou-se Zeus. Os artistas abriram a Caixa de Pandora e deixaram a esperança escapar. Contudo, ela só escapa quando contemplamos uma obra de arte, que foram guardadas em caixas nos períodos históricos, que chamamos estilos artísticos.
Na literatura a esperança é semeada com grandes quantidades de semente. Na própria tragédia grega, o infortúnio alheio como o de Prometeu, nos leva crer que, como ele, poderemos nos libertar de algum mal, mesmo que leve muito tempo. Isso é esperança. Prometeu, uma tragédia e um personagem divino da peça de Esquilo, levaria trinta mil anos para se libertar das correntes que lhe aprisionavam. Nem Zeus conseguiu deter a bondade do amigo dos homens, esse altruísta que nos presenteou com o fogo.
Na música, quase todas as canções nos levam a crer na esperança. As canções de protesto de Geraldo Vandré não surtiram efeito imediato, todavia, plantaram a semente de um futuro democrático. Chico Buarque numa inteligência ímpar bailou, enganando ouvidos, quando outros ouvidos entendiam sua mensagem no sentido da esperança, que tem um tempo para surtir seu efeito. Uma obra de arte qualquer tem uma mensagem e um tempo para que ela funcione como propulsora de ações. Ela aconselha, abre nossos olhos, premedita o futuro esperançoso. Nossos artistas abrem a Caixa de Pandora todas as vezes que semeiam a esperança.
Concordo com Nietzsche quando ele diz que a esperança traz temor, porém, o que há de mau no temor? Precisamos discordar dele. É com ele que devemos combater. Precisamos de inimigos, são eles que sinalizam que a vida é um perigo porque estamos mergulhados no caos - gênese do mundo. Um bom homem guerreiro, que vive o mal vital deverá estar preparado para as guerras da vida. A esperança de que venceremos os inimigos que nos atrasam o viver é que nos mantêm vivos. A arte é a que nos traz esse vigor, são a lança e o escudo gregos. Ela nos estabiliza e nos prepara para a guerra do futuro. Ela nos dá força, nos faz felizes na hora da tristeza, nos dá poder estando fracos, nos apresenta um mundo melhor porque é autêntica, estando nós num mundo que nós criamos como perverso.
Por que para uns o mundo é bom e para outros é mau? Simplesmente porque os mundos somos nós que criamos. O mundo é um só, suas muitas facetas são produtos de nossa ignorância. A arte aplaina essa visão e te mostra nu, livre da sua concepção, mas com a concepção do outro, o artista que zomba do seu temor porque lhe ensina a esperança de que um dia você se libertará das algemas de Zeus, como acreditou Prometeu que se libertaria um dia.
Os libertadores da humanidade
Somos Prometeus algemados, agrilhoados em correntes feitas por Hefesto, deus dos ferreiros, deus dos escultores. A escultura de sua corrente feita para fazer sofrer Prometeu tem dois símbolos. Pode ser visto como o que prende, num primeiro estágio, e a que se quebra pelas mãos de Hércules num segundo estágio - na ação punidora de Zeus o sofrimento inicial, na liberdade futura, a esperança que saía da Caixa de Pandora, a esposa do irmão de Prometeu. Essa mulher foi a primeira da humanidade, qual Eva, ela não podia imaginar que os titãs e os deuses menores poderiam ser substituídos pelos artistas, esses libertadores da humanidade, via esperança.
Os compartimentos são usados para guardar alguma coisa, eles como recipientes dos artistas, guardarão sempre a esperança para poderem liberá-la em suas obras, quando da fruição delas pela observação e degustação dos seres humanos. São sua Caixa de Pandora, esse recipiente divino presenteado pela delicadeza e sensibilidade por nossos embaixadores da arte. Os homens foram castigados por Zeus por terem aceitado o fogo, Prometeu o maior culpado, ficou preso a correntes, finalmente sendo libertado por Hércules. Prometeu liberto ainda pensa que estamos privados da esperança, engana-se, porque nosso maior herói, o artista, mesmo que mortal, driblou a vontade e o desígnio de Zeus criando a arte, essa mágica forma de divina esperança contida em sua artística Caixa de Pandora.
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