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Resenha

Levando o leitor para dentro do labirinto

Livro de Tarcísio Cavaliere tem desfecho elementar, mas isso não significa que seja previsível como um eclipse lunar, no qual sabemos exatamente o que vai acontecer

Crítica  –  14/05/2013 11:21

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(Foto: Divulgação)

Trama intercala diálogos que fluem no mesmo ritmo e momentos
de tensão, ou seja, estão permeados por uma prosa em montanha-russa

Renato Barozzi

Tenho sonhado todas as noites com fragmentos da minha infância. Vejo nitidamente meus amigos. Nossas travessuras passam diante dos meus olhos como se eu estivesse assistindo a um filme. Lembro de ficarmos conversando até tarde da noite na porta do "seu" Nelson, pois sabíamos que ele saía para dançar forró e chegava tarde, já que era viúvo e morava sozinho.

Invariavelmente sonho também que estou jogando futebol. Sempre faço o gol decisivo e sou ovacionado. Claro que nesses sonhos sempre está presente também a imagem de uma falta bem batida no travessão. Modéstia à parte, a minha "canhotinha" sempre foi muito precisa. O futebol sempre foi a minha paixão de infância. Confesso que ainda "fumega uma torcida dentro de mim". Quando penso nisso ainda sinto um nó na garganta e um aperto no peito. Talvez seja uma questão não resolvida.

Dias atrás eu sonhei que brincava de corrida de palitinhos na canaleta. Quando chovia, a água corria forte na frente das nossas casas. Era hora de pegarmos as caixinhas de palitos de fósforo, ou a da "Gina", e sair correndo, tendo atrás o grito de mães e avós pedindo para sairmos da chuva. Claro que não adiantava muito todo o dispêndio de energia daquelas senhoras, pois o rio já estava enchendo e consequentemente migraríamos para lá.

Certa vez a correnteza estava tão forte que um colega se agarrou na árvore antes que chegasse a ponte, como fazíamos sempre, e teve arrancada a sua bermuda, tendo que voltar para casa de cueca apenas. Queríamos arrancá-la também, mas ele conseguiu se safar.

Olha que coisa engraçada! Numa dessas noites eu sonhei com o "seu Nenêgo". Brincávamos de bola na garagem dele. Era um ambiente que parecia um corredor enorme. Na verdade ela era apenas um pouco larga e cabiam dois carros, mas para nós aquilo parecia enorme. E como havia uma escada dando acesso a uma ampla varanda, fantasiávamos estar subindo o túnel do Maracanã. Aquilo me arrepiava. Sempre levei minhas emoções ao limite. Tudo para mim sempre tem que ser muito intenso. Não gosto de aperto de mão frouxo. Vibro com conquistas quotidianas e não gosto de perder nem no Uno para a minha filha de seis anos. Isso revela um pouco da minha personalidade.

Mas, estava falando do “seu Nenêgo”. O que achei interessante não foi somente o sonho em si, mas o fato de no dia seguinte, encontrar no elevador com a esposa dele e, ao perguntar como ele estava, soube que sua saúde não está boa e que há uma doença a consumir-lhe. Mandei um abraço e desejei tudo de bom. Era muito legal, a Belina do "seu Nenêgo" enchia só com a filharada e nós ainda queríamos uma carona.

O relato relaxado e incoercível que fiz acima, reflete minha temporária disposição em despejar memórias e sentimentos em público. Isso tem um culpado, ou melhor, um incentivador, já que devemos expurgar toda a culpa. Esse incentivador me foi apresentado faz mais ou menos duas semanas. Trata-se do livro: "Te espero semana que vem...", do psicólogo clínico J. Tarcísio Cavaliere Jr.

Narrativa foi construída a partir de personagens
que participam de uma psicoterapia em grupo

Cada qual com seus problemas, dilemas, traumas, doenças, recalques, idiossincrasias e sonhos. Sim. Exatamente isso, sonhos. Por que não tê-los?

Exatamente por tê-los em profusão é que tomei a liberdade de fazer-me parte do livro - espero que o autor não se importe - inserindo-me nele a partir do preâmbulo deste comentário.

A leitura e reflexão do que o autor chama de "dor singular, urgente, profana, que dilacera a alma" - convidou-me a adotar esta postura ativa. Ergui-me. Senti então vontade de estar presente e participar. Daí é que procede a minha manifestação e meu envolvimento quase tátil com os personagens. Sinto como se eu estivesse ali, na sala, ouvindo e expondo, chorando e rindo, escondendo e revelando, junto aos demais. Isso não é bisbilhotice ou intrusão de minha parte, mas a capacidade do autor em levar-me para "dentro do labirinto" e deixar que eu encontre a saída.

Neste sentido, o livro revela a alma de cada um no mesmo instante em que cultiva mistérios profundos. É um "checks and balances" literário recheado de psicanálise. É uma prosa que despe fraquezas humanas e deixa subentendido absurdos e atitudes incríveis das quais somos capazes, mas não sabemos que somos. Cada encontro é um mergulho naquilo que pensamos conhecer. E, quando finda a sessão e achamos que estamos salvos, o desconhecido invade a privacidade, deixa um bilhete e retira a mínima confiança que ainda existe, faz-se então o abismo.

O autor mostra que o esforço de desvendar a própria alma pode ser mais perigoso do que imiscuir-se em assuntos alheios. Enquanto tratamos aquilo que nos é externo sempre em tese, o que nos diz respeito corre nas veias, pulsa, dói e pode nos levar à morte. Um tipo de morte diferente, metafórica, mas que nem por isso deixa de ser um sentimento desagradável. Não é exagero. Leiam o livro e saberão do que falo.

Outra qualidade do autor é a aplicabilidade na medida certa de suas experiências profissionais à ficção. Com isso ele disseca, sem muito esforço, a personalidade e os sentimentos de seus pacientes-personagens, transmitindo-nos seus altos e baixos, desesperos e regozijos, verdades e mentiras, amores e ódios, rejeições e desejos etc.

Tudo isso segue numa trama que intercala diálogos que fluem no mesmo ritmo e momentos de tensão, ou seja, estão permeados por uma prosa em montanha-russa, que o tempo todo evoca mistério e lucidez; o racional e o imaginário; a serenidade e a aflição; levando o leitor a realizar, apenas com a leitura do livro em si, um teste de esforço que oscila entre a taquicardia e o estado basal. Quem disse que ler não consome energia? Neste caso concreto calorias vão ficando pelo caminho.

Enfim, o desfecho é elementar, mas isso não significa que seja previsível como um "eclipse" lunar, no qual sabemos exatamente o que vai acontecer. Os "eclipses" comportamentais e a transfiguração psicológica são bem mais complexos. São fatos que obscurecem nosso entendimento e tentam nos tirar a capacidade de nos assumirmos como verdadeiramente somos ou de encararmos a realidade da nossa existência. Não podemos viver como se fôssemos astros sem brilho que gravitam ocultos por astros que brilham. Despojar a fantasia e vestir a verdade pode, a princípio, trazer agonia, mas é o primeiro passo para sermos, de fato, felizes.

Cheguei a essa conclusão após o ponto final. Foi quando o jogo terminou para mim. Então eu tirei a camisa, entreguei as chuteiras e fui para a arquibancada com os meus filhos torcer pelos meus astros. Agindo assim me tornei um astro real naquilo que escolhi ser. E espero brilhar cada dia mais.

> Renato Barozzi, após ler o livro, decidiu que não vai mais esperar a semana que vem para ser ele mesmo

Por Redação do OLHO VIVO  –  contato@olhovivoca.com.br

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