
(Foto: Divulgação)
Filme furioso: Sem nenhuma complacência com a
recôndita e usualmente disfarçada natureza humana
e totalmente indiferente à aceitação e recepção pelo
público, não lhe fazendo nenhuma concessão
Publicada: 18/04/2017 (18:21:01)
Atualizada: 06/05/2017 (11:22:48)
Guido Bilharinho
Sob a influência ou sugestão do título, “A família do barulho” (1970), de Júlio Bressane, não se vá pensar em assistir filme mentalmente burocrático na concepção e convencional na efetivação.
Ocorre justamente o oposto. Liberto de todas as amarras usais, Bressane realiza película desataviada e invulgar, na qual apresenta flagrantes relacionais familiares pautados pelo nonsense, mas, em que desenvolve pelo menos duas linhas ficcionais que se articulam como ligamentos de cenas e sequências: a contratação de odalisca e as reincidentes tentativas da personagem representada por Helena Inês de ser aceita pelo protagonista que a esnoba, não obstante sua beleza e dotes físicos.
Todavia, num filme anticonvencional no mais alto grau, esses eixos diegéticos apresentam-se também incomuns e até mesmo enigmáticos em decorrência da elisão propositada de causas e motivações de certas atitudes das personagens.
Os relacionamentos são sempre conflituosos e agressivos, não, porém, com raras exceções, sob o timbre costumeiro de intrigalhadas e discussões prosaicas. Os conflitos são de natureza diversa, decorrendo da constatação da natural animalidade do ser humano que, despido de elaboração e amadurecimento emocional e destituído de controle racional, estadeia-se na pura organicidade do viver, apresentando condutas e atitudes incompreensíveis, se vistas e analisadas sob os parâmetros invocados, ausentes da formulação e da estruturação fílmica, pautadas pela organicidade concepcional e pela percepção da animalidade humana.
Por essa via, procede-se ferina crítica contra a falta de sentido da vida da maioria dos indivíduos, já que expostos e tratados pelo viés de congênita rudeza e grosseria. É filme furioso, sem nenhuma complacência com a recôndita e usualmente disfarçada natureza humana e totalmente indiferente à aceitação e recepção pelo público, não lhe fazendo nenhuma concessão.
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"A famílda do barulho" não se insere nem se coaduna, por isso, com o circuito comercial de exibição, onde os espectadores "normais" e convencionais o repudiariam, em decorrência do condicionado e insalutar hábito desse tipo de público de se comprazer apenas com a superficialidade, o facilitário, o comadrismo e a intrigalhada da ficção produzida pela indústria do entretenimento.
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É filme que apresenta, às vezes, demorada fixação de cenas pela necessidade e importância da apreensão atenta da imagem exibida.
Além disso, veicula cenas absolutamente insólitas e enigmáticas como as do aeroporto e, principalmente, a algumas vezes repetida e invocada sequência em que misteriosa mulher ignora e se afasta de homem ajoelhado a seus pés em atitude implorativa, justamente o oposto do que ocorre entre a personagem desconsiderada e o protagonista.
Enfim, filme que, como todo o cinema marginal, resgata a liberdade e independência intelectual do artista numa sociedade dominada pelo convencional, o manipulado e o espetaculoso, deformações que se têm avolumado e agravado, a ponto de marginalizar e até exilar o saber, o conhecimento, o estudo, o esforço, a criatividade e a inventividade. (do livro “Seis cineastas brasileiros”. Uberaba, Instituto Triangulino de Cultura, 2012)
> Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia “Dimensão” de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura (poesia, ficção e crítica literária), cinema (história e crítica), história (do Brasil e regional)
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