(Foto: Divulgação)
O filme “Mocinho encrenqueiro” decorre de
criação própria que, por sua vez, atende e
corresponde à sua faculdade de estar e se
posicionar no mundo, categoria superior à
simples representação ou ao modo
peculiar de ser e agir
Guido Bilharinho
A comicidade de Jerry Lewis (1926-2017), ator e cineasta, advém da conjunção de dois fatores, que compõem distintos níveis estruturais de seus filmes.
Um, a subversão da normalidade, que direciona a narrativa, imprimindo-lhe orientação precisa e coordenada visando extrair dos fatos a hilaridade ao interferir na sua articulação interna.
Outro, sua performance como ator, implicando em desenvolvida capacidade histriônica e atilada percepção dos meios e modos corporais, faciais e comportamentais apropriados.
Isoladamente, cada um desses elementos não produziria o resultado pretendido e alcançado, visto que as situações vivenciadas exigem ambos para agasalhar seus tipos e maneira de agir.
Há, pois, perfeito entrosamento entre eles, num inter-relacionamento (personagem/acontecimento/comportamento) orgânico e organizado, estabelecido segundo as normas indicadas e ditadas pelas possibilidades pessoais de Lewis.
Sem ele, as ocorrências expostas careceriam de comicidade, já que, além da mencionada adequação entre indivíduo/personagem/fato, as subverte, circunstância que, se inocorrente, também não atingiria o efeito pretendido.
O filme “Mocinho encrenqueiro” (The Errand Boy, EE.UU., 1961), que Lewis dirige e no qual atua, enquadra-se nessa fórmula, que se o é, decorre de criação própria que, por sua vez, atende e corresponde à sua faculdade de estar e se posicionar no mundo, categoria superior à simples representação ou ao modo peculiar de ser e agir.
A ação transcorrida em grande estúdio cinematográfico hollywoodiano é sucessão ininterrupta de atos procedimentais subvertedores, que, alguns, refugindo à sua iniciativa por conter carga própria de comicidade (as duas cenas do elevador), mas que sem sua presença não seriam tão significativas e, certamente, nem seriam divertidas, como as milhares de cenas de elevador, se também não fosse a sina da personagem de atrair sobre si certas dificuldades.
Nas principais situações de alta comicidade, algumas resultam exclusivamente de seu modo de agir (cenas dos pacotes, da entrega do roteiro de filme, do relógio de ponto, do manequim e do acompanhamento musical na sala de reunião da diretoria de estúdio), outras repartem-se entre sua atuação e a de outras personagens, cujos comportamentos também contêm doses de humorismo (o “almoço” na própria repartição e a venda dos feijãozinhos às crianças).
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A sequência do acompanhamento musical é antológica, revelando não só suas habilidades histriônicas como domínio dos ritmos musicais, permitindo esses elementos que se tenha uma das mais brilhantes cenas de pura interpretação, na qual a adequação e a sincronização gestual e facial de Lewis com o ritmo musical são perfeitas.
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À semelhança do ocorrente em outros de seus filmes, nesse acontecem também lances românticos alheios às influências jocosas, nos diálogos com os bonecos do palhacinho e da magnólia, que fogem inteiramente da ambiência fílmica, revelando outra (ou a outra) faceta da personagem.
De todo modo, os acontecimentos fílmicos e a performance de Lewis não são cinematográficos, tendo valor próprio, independentemente do meio utilizado para sua consecução e expressão, podendo manifestar-se em palco de teatro, arena de circo, cena de rua ou estúdio de cinema, aplicando-se-lhe o que de Chaplin observou um crítico paulista, Paulo Emílio Sales Gomes, “Chaplin é Cinema?”. Mas, sem dúvida, o cinema não só os ampliam como infundem-lhes perspectivas de aproximação e movimentação inexistentes nos demais espaços.
> Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia “Dimensão” de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura (poesia, ficção e crítica literária), cinema (história e crítica), história (do Brasil e regional)
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