(Fotos: Felipe Branco Cruz)
Espetáculo em nove atos começou no Parque das Preguiças e terminou na Fazenda da Posse
> Leia também: Cerca de 400 artistas participam do Nasce Uma Cidade
Felipe Branco Cruz
Com o passar dos anos a cidade de Barra Mansa, no interior fluminense, sucessivamente apaga partes importantes de sua história. A região, que já foi chamada de Timburibá e pertencia aos índios puris, araris e coroados, foi tomada pelos colonizadores. Tornou-se a maior produtora de café do Brasil, mas hoje não produz nem o pingado que é servido nas padarias da avenida Joaquim Leite. Reinventou-se e passou a ser a maior produtora de leite do país. De novo, perdeu o posto e hoje mal consegue fazer um tablete de manteiga. Veio o aço. Foi escolhida por Getúlio Vargas como o local da construção da maior siderúrgica do Brasil, a CSN. Impossível perder esse posto. Mas Barra Mansa perdeu, pois o local onde a usina foi instalada emancipou-se, virando Volta Redonda. A história do município, portanto, é feita de perdas. A maior delas é a perda de sua história. Seus casarões antigos foram demolidos e a cidade não planejou seu futuro. Hoje, Barra Mansa é um Frankenstein de prédios feios ou inacabados e poucos moradores sabem como tudo começou.
É por isso que iniciativas como a do Coletivo Teatral Sala Preta são importantes. O grupo promoveu no sábado, 11, o desfile cívico-cênico Nasce Uma Cidade pelas ruas do município. Dada a magnitude e a importância histórica que a encenação teve para Barra Mansa, pouquíssimas pessoas seriam capazes de imaginar que tudo aquilo foi feito sem dinheiro algum. Em um rápido levantamento, um espetáculo como esse não sairia por menos de R$ 400 mil (no mínimo) e, no entanto, custou R$ 0.
Na encenação, que celebrou os 182 anos de Barra Mansa completados em 3 de outubro, foi possível perceber que a Semana de Arte Moderna de 1922 continuou influenciando os jovens que nasceram 60, 70 anos depois. Tem um pouco de teatro de rua e de Zé Celso Martinez Correa, tem um pouco de Villa-Lobos e também de antropofagia. E tem muito de Flávio de Carvalho e Clécio Penedo, os dois artistas ligados à cidade que inspiraram a peça deste ano.
Primeiro ato: Parque das Preguiças
Ao todo, foram mais de 400 artistas mobilizados em nove atos. O espetáculo começou no Parque Centenário (ou Parque das Preguiças) onde a trupe promoveu um verdadeiro ato antropofágico ao misturar as obras de arte de Clécio Penedo com um banquete canibal indígena. Vale destacar os cuidadosos figurinos e adereços criados pela artista Inara Gomide, que conseguiu transpor para a vida real o hiper-realismo que Clécio Penedo criou para as suas telas. O resultado foi uma cena poderosa emoldurada pelo paisagismo de Burle Marx em meio às plantas nativas da Mata Atlântica e bichos-preguiças da Amazônia.
Segundo ato: Palácio Guapi
Em seguida, o público foi encaminhado para fora do parque, bem em frente ao Palácio Guapi, onde durante muito tempo funcionou a Câmara Municipal. Lá foi encenada a elevação da localidade em município.
Terceiro ato: Flávio de Carvalho
Dali o grupo seguiu quase como em uma procissão para o terceiro ato, em referência a Flávio de Carvalho. Foi neste momento que réplicas idênticas às máscaras de alumínio criadas em 1933 pelo artista para a peça "Bailado do Deus Morto" surgiram em cena. A força das máscaras não deixou ninguém indiferente. Detalhe: o adereço foi cedido pelo Teatro Oficina, em São Paulo, exclusivamente para o Nasce Uma Cidade. Alguns artistas também apareceram usando saias, mais uma referência ao modernista que em 1956 quase foi linchado ao andar por São Paulo usando saias na contramão de uma procissão religiosa.
Quarto ato: Travesti Jeciléia Matiolli
O quarto ato também foi marcante. Ele contou com a poderosa participação da travesti Jeciléia Matiolli, que relembrou o suicídio de outra travesti, em novembro de 2004, quando Nena Capeta se jogou no Rio Paraíba do Sul, saltando da Ponte dos Arcos. Neste momento, poucos perceberam, mas um boneco manequim também foi jogado da ponte. Durante uns 20 minutos, a travesti ficou imóvel, como uma efígie, tendo como cenário atrás de si a ponte e o rio.
Quinto ato: Clube Municipal
O quinto ato, no entanto, foi um dos mais impactantes do espetáculo, pois fomos convidados pela Trupe Circo Palácio Trepidante para a Pool Party do Clube Municipal. O local famoso em Barra Mansa por seus bailes desde a década 70 encheu as pessoas de nostalgia. O lugar é repleto de história. Por exemplo, seu casarão, que está em processo de tombamento (ou desabamento mesmo), já abrigou a princesa Isabel quando ela visitou a cidade. O momento mais emocionante foi quando uma orquestra de jazz tocou ao vivo de dentro da piscina olímpica do clube, que está abandonada, recriando os grandes bailes do passado. Sensacional!
Sexto ato: "Baralho Imperial"
Terminada a festa da piscina, fomos convidados a ir para o lado de fora do Clube Municipal. Ali a Trupe Circo Palácio Trepidante criticou abertamente (e também por meio de várias sutilezas) a falta de cuidado do poder público e do povo com a sua história. Essa crítica foi feita tendo como pano de fundo uma das obras mais marcantes de Clécio Penedo, a série "Baralho Imperial".
Sétimo e oitavo atos: Linha férrea
Por fim, o sétimo e o oitavo ato foram representados nas margens da linha férrea que corta a cidade. Só quem mora em Barra Mansa sabe como a presença constante do trem atrapalha e modifica a rotina das pessoas. Porém, num passado não muito distante, por cima destes trilhos também foram transportados passageiros (e não só minério de ferro para a CSN). Em um daqueles vagões chegou à Barra Mansa Clécio Penedo ainda criança. E a encenação de seu desembarque na cidade também mereceu destaque. O grupo recriou o barulho do trem usando materiais como latões, extintores de incêndio, paus e pedras. O resultado imediatamente nos remeteu a Villa-Lobos, compositor de "O Trenzinho do Caipira" e modernista que desafiou os padrões da época ao reger uma orquestra descalço.
Último ato: Fazenda da Posse
O término da apresentação aconteceu na Fazenda da Posse, primeira edificação de Barra Mansa. Lá mais uma vez as máscaras de Flávio de Carvalho voltaram a aparecer. E, com a noite chegando, o público cansado, porém extasiado após mais de três horas de duração, presenciou o épico fim do espetáculo.
_____________________________________________________
Vale destacar o caráter nômade da peça. Como se tratou de um teatro de rua itinerante, foi interessante notar como os artistas conduziram os espectadores a percorrerem os caminhos corretos. Porém, cada um ali foi livre para ver e ouvir a peça do lugar e da maneira que quisesse. O teatro de rua, portanto, teve suas particularidades. Ao mesmo tempo em que foi erudito e repleto de referências históricas importantes (como as que eu citei acima), ele também foi popular e falou diretamente com as massas. Nas mais de três horas de duração, foi impossível conseguir prender a atenção do público durante 100% do tempo, porque todos ficaram cansados, se distraíram e sofreram com a interferência daquilo que estava ao redor, como o barulho de carros, sol, chuva, calçadas esburacadas, mendigos, trânsito, enfim. Porém tudo isso fez parte do charme e deu o diferencial importante que uma peça teatral como essa impôs.
É nesta hora, então, que percebemos a importância da direção do espetáculo e, principalmente, de sua trilha sonora composta magistralmente por Bianco Marques. Todas as canções são autorais e escritas com exclusividade para o Nasce. Somando tudo isso, o resultado, portanto, foi uma mistura de teatro de rua itinerante com pitadas de musical da Broadway em plena Barra Mansa. Mas o objetivo mesmo foi resgatar e manter viva a história da cidade. Nem que para isso fosse necessário tomar as ruas à força. E foi isso que eles fizeram. Viva Barra Mansa!
. A edição original do texto você lê aqui.
______________________________________________________
Serviço
> Nasce Uma Cidade - O espetáculo será encenado mais uma vez, neste sábado, 18, a partir das 15h. O ponto de encontro será no Parque das Preguiças.