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Sonhar e Realizar

Reflexões sobre o psicólogo, um indisciplinador de almas

A disciplina nos faz viver o que seria regular, ideal, normal, ainda que não necessariamente nos agrade; mas quando ela se torna uma sofrida obrigação nos vemos mergulhados num mar de dor

Artigos  –  24/01/2021 08:42

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(Foto Ilustrativa)

"A minha vida indisciplinadora de almas"

(Fernando Pessoa)

 

Haliny Lopes Lima

Ao ler a frase que acompanha a foto acima, logo me veio à cabeça aquele que indisciplinou minha alma. 

Encontrei em Cortella um pensamento que cabe aqui. Ele diz que “existe uma indisciplina saudável, aquela que nos tira das trilhas de um conforto perigoso, que nos faz pensar de outro modo, que nos leva a sonhar”. E eu completo dizendo: sonhar e realizar. Realizar aquilo que nos torna o que realmente somos; o que somos na alma. 

Bem! Muitas vezes em nossa vida somos levados a absorver certa disciplina. Disciplina esta que nos é imposta, que dita regras, nos acorrenta, que diz o que é certo e o que é errado, o que devemos fazer, o caminho que devemos seguir, como devemos proceder. Quer que sejamos certinhos, impecáveis como ela deseja. Mas essa disciplina nos infelicita, já que pode nos colocar numa rota indesejável. Uma rota de angústias, solidão. 

A disciplina nos faz viver o que seria regular, ideal, normal, ainda que não necessariamente nos agrade. Mas quando ela se torna uma sofrida obrigação, nos levando a fazer o que não desejamos, nos vemos mergulhados num mar de dor. O que se torna ainda pior ao afirmar que aquilo que é o desejo da nossa alma é errado, pecado; e o lugar onde ela almeja ir é inapropriado. Caos! 

Eu era uma alma ferida ante a vida. Era tão frágil assim como uma folha no outono, que apenas um leve tocar do vento... Cheia de carências, completa de ausências; que alma singular era eu. Sempre obediente às regras, acabei me vendo presa nas correntes de uma disciplina tóxica que sufocava e feria minha alma. Por mais que eu quisesse não conseguia me libertar. 

“A vida é feita de escolhas”. É o que ouvimos de qualquer pessoa. Mas é fácil escolher? É fácil seguir o que se escolhe, o que se deseja? Não para toda alma. Para a minha não era fácil. Não é fácil quando se veste a capa de uma garota tímida, insegura, medrosa e reprimida; uma garota que sequer é capaz de dizer “não” às coisas indesejáveis que lhe são impostas. Não é fácil quando se vive a vontade do outro e para o outro, renunciando ao próprio querer, encobrindo a própria voz. Ah! Como isso dói. Não é fácil, sozinho, livrar-se das correntes mentais. 

Minha alma vestia essa capa, escondendo quem de fato era. Ah! E que mulherão vivia escondida lá! Nem minha alma fazia ideia. Fora tanto tempo vendo-se pelo espelho da disciplina, que ela não se enxergava mais, via-se apenas como uma garota pequena e sem graça. Enfim. Aquela capa tornara-se arcaica, velha e pesada demais. Não cabia mais em mim; era hora de eu me libertar dela, indisciplinar minha alma para que ela se desnudasse, gritasse, movesse, enfim: para que vivesse! 

Minha alma estava se afogando num oceano de dor e angústias. Eu precisava de um salva-vidas urgentemente, aquele que indisciplinaria minha alma. E ele surgiu; eu o avistei de longe, pedi-lhe socorro e ele veio ao meu encontro. Aceitou me resgatar aquele que salvaria minha alma, estendendo-lhe a mão, colocando-me em seu barco e ajudando-me a enxergar a rota do desejo e não mais a rota da pesada disciplina. 

O salva-vidas, um analista. O barco, um divã. 

Mas mesmo subindo naquele barco, sentando naquele divã, eu ainda não tinha segurança para acreditar em alguma mudança, nem saber que rota seguir. Eu só queria um escape para sair daquele afogamento, mas não acreditava que aquele barco pudesse me levar a um novo mundo. Eu só me sentia muito cansada e sozinha, precisando de alguém com quem pudesse conversar, me abrir, ser ouvida e desabafar as angústias para oxigenar a alma sufocada. 

No início foi assim, eu não tinha perspectiva de mudar minha situação. E até raiva sentia quando aquele indisciplinador dizia que um dia aquela fala em prantos, por muito ser repetida, se tornaria riso. Eu não podia acreditar em tal insanidade. Minha vida não mudaria!!! Eu não tinha capacidade - era o que eu pensava. A cada dia eu reencontrava meus desejos, mas sabia que não tinha livre-arbítrio para pô-los em prática. Tendo alguém com quem compartilhar a dor já seria o bastante para mim. 

Mas o barco foi lentamente navegando sobre aquele oceano turbulento e de repente eu vi que a tempestade já não estava tão bravia. Sessão após sessão, aos poucos, fui vendo que conseguia obter pequenas mudanças com pequenos atos. E isso era tão surpreendente! Eu me perguntava: “Eu realmente fiz isso?”. Era o poder do divã acontecendo sem que eu me desse conta. 

Quando sentava naquele divã despejava tantos sentimentos obscuros. Eu reclamava demais! Era raiva, rejeição, retração, incapacidade, pequenez... Como eu desvalorizava a mim mesma; eu não tinha falas agradáveis sobre mim. E o pior é que eu acreditava serem essas, verdades absolutas e imutáveis; mesmo quando na análise eram abertas outras versões de mim, para mim soavam sarcásticas. Mas não há nada que o tempo não mostre. Aquela fala foi mudando de tom, eu já não reclamava tanto; comecei a trocar dores por flores. Como isso era incrível! Rubem Alves diz que se conhece o estado de uma alma pela música que sai da sua fala e que o analista sabe como está seu paciente só de escutar o tom que soa da sua fala. Eu imagino quantas melodias tediosas aquele indisciplinador teve que suportar! Mas devido à persistência que teve em não deixar que eu desistisse e à força que fui adquirindo, posso dizer que ele ouviu algumas belas melodias também. Melodias de uma nova roupagem que diziam mais ou menos assim: 

“Mas eu preciso de outros sapatos
De outras roupas, outros temperos
Para formar minhas ideias e meus sentimentos
Eu sou a soma de tudo que vejo
E minha casa é um espelho
Onde à noite eu me deito e sonho com as coisas mais loucas
Sem saber porque” 

(Meu reino - Biquíni Cavadão

O milagre de um divã...

Foi naquele divã que divaguei em minha alma. Ali eu vi “a eternidade numa hora” e descobri que as estrelas brilham acima das nuvens. Foi naquele divã que o silêncio revelou mais do que palavras e os sonhos me revelaram além dos meus atos abstratos. No divã foi onde repousei no casulo de uma metamorfose incerta. Foi naquele divã que tirei a capa da velha garota, aprendi a quebrar regras e vi nascer a linda alma que havia dentro de mim, enxergando a mulher forte e incrível que eu era. Também aprendi que viver é uma eterna reconstrução e que não existe vida sem ação. Naquele divã eu entendi que um verão nunca é eterno, mas um inverno também não; a vida está sempre se renovando, e sempre há um outono e uma primavera, despedida e renovo: temos que saber extrair aprendizados de cada situação que passarmos. Foi naquele divã que pela primeira vez olhei-me pelo espelho dos meus olhos e... eu amei me ver. Arranquei as grosseiras tintas com que me pintaram e descobri eu ser de uma cor tão harmônica! Foi naquele divã que revi conceitos, abdiquei de concepções incabíveis e desacreditei de velhas crenças para acreditar em quem eu sou. 

Mas aquele divã não era conforto. Foi um barco que enfrentou uma tempestade arriscada. Sacudiu-me inteira! Fez-me chorar. Aquele divã abriu velhas feridas para limpar as impurezas: aqueles receios e temores. Isso sangrou. Sangrou e doeu. Tive que resistir para não desistir. Quantas vezes eu pensei em parar. Estar em um divã psicanalítico não é encontro com a tão idealizada felicidade contemporânea. Ah, não sente em um, se estiver à procura dessa! Estar num divã é estar disposto a se ouvir, a aprender através dos próprios atos, a tomar as rédeas da própria vida, gerenciando os próprios problemas, a assumir a responsabilidade de suas escolhas aceitando as consequências, aprender a sorrir a despeito da dor. 

Mas toda a dor foi essencial. Meus olhos começaram a se abrir para novas visões, correntes em minha mente começaram a serem quebradas. Aquele indisciplinador fez minha alma começar a assumir as próprias vontades, a ser sujeito e não objeto, a viver uma “indisciplina saudável”, tirando-a “das trilhas de um conforto perigoso”, a brindar a vida com o vinho da liberdade. 

Ele indisciplinou minha alma para que ela pudesse realmente viver. Ele foi uma “insuportável” vida indisciplinadora de almas. E minha alma aprendeu que é a indisciplina que a dá vida. 

Um indisciplinador e um divã. É saber que há jardineiros que levam para o seu jardim aquelas almas do acaso, rejeitadas, dilaceradas, que aos olhos não há beleza; almas sobrecarregadas de folhas secas, sufocadas por ervas daninhas, cujas raízes sequiosas vivem mortas. São essas almas que na mão dos jardineiros indisciplinadores têm podadas as velhas crenças, limpas as constantes culpas e são regadas com novas atitudes. Assim, tornam-se almas floridas, que exalam beleza e vida, encantando os olhos daqueles que por elas passam. 

> Haliny Lopes Lima é professora, licenciada em história, especializada em arte e educação, como também em filosofia e sociologia. Descobriu o interesse pela escrita por meio da psicanálise. Seus textos expressam os sentimentos adquiridos de acordo com suas vivências. É autora de textos reflexivos publicados em seu blog Quando a Alma FalaUm de seus textos foi publicado na “Coletânea Fliva 2019 - Feira Literária de Valença. 

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Por Redação do OLHO VIVO  –  contato@olhovivoca.com.br

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