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A Língua Falada e a Língua da Música (Parte 1)

A linguagem e escrita musical x as línguas do mundo

Sabem quantos tipos de escrita tem a música ocidental, a que praticamente todos os países usam? Uma!

Música  –  31/03/2019 11:05

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(Foto Ilustrativa)

Incrível não ser necessário uma prova de leitura de música, por exemplo, no mestrado de filosofia

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi 

A educação de alguns países perde a oportunidade de ensinar a linguagem da música. A leitura das notas musicais na partitura é uma chance única e imperdível para uma sociedade. Esse artigo propõe uma comparação entre a importância do ensino de muitas línguas estrangeiras para um mesmo indivíduo "versus" a importância do ensino da linguagem e consequente leitura da pauta da música. Imaginem a seguinte visão de que se tivéssemos obrigatoriamente ter que ler e falar todas as línguas do mundo. Esse talvez fosse um dos maiores desafios do homem para o homem. Imaginem a quantidade de línguas e dialetos que as sociedades têm e tiveram, incluindo aí, as línguas "mortas", como o importantíssimo latim e o grego koiné, o grego de Aristóteles. 

Muitos buscam ser poliglotas, começam pelo inglês, passam pelo francês e talvez se arrisquem no alemão. Línguas parecidas com o português, como o espanhol e o italiano, causam uma falsa impressão de que podemos falar ou entendê-las, contudo, elas nos traem quase sempre com seus falsos cognatos (isso não acontece na leitura da pauta musical). Talvez, consigamos falar ou pelo menos ler em algumas línguas. A maioria que deseja ser poliglota, possivelmente, não passará de quatro, incluindo a sua língua mãe. Existem milhares de idiomas, somando-se aí os dialetos e as línguas dos povos ditos primitivos, línguas indígenas ainda sem escrita, isso para não mencionar aquelas perdidas no acervo de museus que se queimaram, onde as chamas engoliram e devoraram seu passado e décadas de pesquisa. 

Sabem quantos tipos de escrita tem a música ocidental, a que praticamente todos os países usam? Uma! 

Um pré-requisito para o mestrado é o da aferição de conhecimento dos candidatos em uma língua estrangeira para a aprovação de uma dissertação, do dourado, em algumas instituições, duas línguas. Incrível não ser necessário uma prova de leitura de música, por exemplo, no mestrado de filosofia, quando Pitágoras, um dos maiores e importantíssimo filósofo grego e sua escola, o "semicírculo", disseminaram um conhecimento único, afetando o pensamento da humanidade. 

Pitágoras e Nietzsche 

Pitágoras está na ponta histórica do passado, consequentemente na outra ponta esta Nietzsche, que revela em uma de suas principais obras, "O Nascimento da tragédia", que tem como subtítulo: "Na origem da música", onde faz "indiretamente" alusão a uma necessidade de saber ler música como ele sabia. Música para ele era a música escrita, como a entendia, e como compunha suas obras que estão à disposição na internet.  

Composições de Nietzsche 

Não compreenderemos essa obra ("O nascimento da tragédia") por completo se não estivermos capacitados a entender música em seu aspecto composicional. É bem verdade que não possuímos registros das notações musicais gregas ainda, principalmente das partituras dos músicos que acompanhavam o coro ditirâmbico (coro das tragédias gregas). Mas ainda é cedo para dizer que elas não existiam. Duvido de sua inexistência. É bom esclarecer, lembrar que Nietzsche era um excelente músico, que tinha uma excelente leitura das notas, consequentemente da pauta musical, era compositor e para finalizar grande amigo de Richard Wagner na primeira fase antes da posterior inimizade. 

Se considerarmos que Nietzsche foi o divisor de águas na filosofia, negando o pensamento de Kant, Descartes, Sócrates e a turma toda do "idealismo", e com suas razões, influenciando posteriormente Foucault e muitos outros, baseado em que a música estava impregnada em suas veias, deveríamos dar uma grande importância à música escrita. A música aqui é aquela que se possa ler, compreendendo seu universo escrito, porque só através dela poderemos mergulhar em sua linguagem e sua filosofia do espírito que se espanta pelos estados extáticos que a música proporciona ao ouvinte, essa que as sociedades se recusam em disseminar. 

O que Nietzsche viu na música dramática grega, deslumbrando-se, o efeito do "thauma" (espanto, maravilhamento filosófico), estava baseado no arcabouço do conhecimento musical e o que a música poderia influenciar no estado emocional da plateia dos teatros. Baseou-se, possivelmente, nos estados extáticos que presenciou em sua vida prática, ouvindo Liszt, Beethoven, Bach e outros tantos. Comparou o que a música de sua época e as épocas anteriores produziam como reação ao ouvir o material sonoro, imaginando o que os gregos poderiam ter sentido. Sem dúvida, ele conhecia bem os "modos musicais" gregos usados nas cidades estados descritos por Aristóteles em sua obra "problemas musicais" e seus efeitos sobre o comportamento humano afetado pela música. Nietzsche detalha em uma de suas obras, "A introdução à tragédia de Sófocles", os estados extáticos em que o espectador grego se encontrava quando ouvia a flauta dionisíaca e a lira apolínea. Constata-se nessa obra uma infinidade de argumentos que fazem alusão à harmonia, melodia e aspectos intrínsecos da música escrita que só o conhecedor da linguagem musical poderá decifrar nas suas claras, definidas linhas de pensamento sobre a música do teatro grego nas tragédias. 

Lira grega 

Não podemos dissociar nem esquecer que Nietzsche, com toda sua capacidade musical, possa ser entendido com ouvidos surdos e leigos. Para o real entendimento de suas palavras é mister que o leitor nietzschiano possua um entendimento da escrita musical, porque só ela nos faz compreender a real linguagem, pois essa carrega em seus braços a "sintaxe", morfologia, grafismo e uma gramática desconhecida dos curiosos ouvintes que pensam saber ouvir música. A beleza técnica da música tal qual Nietzsche apreciava estava principalmente na articulação das frases, com suas perguntas e respostas, ecos, interjeições e períodos musicais que são intrínsecos a qualquer música no mundo, em analogia com as línguas. Esse autor possuía a radiografia da música e seu poder de influência sobre o homem. Entender a música grega sem o mínimo saber da escrita musical moderna é não entender o fenômeno que se observa aqui no presente, quiçá no passado. Ele entendeu melhor do que os próprios gregos do período de Sófocles o que a plateia sentia, pois conhecia cientificamente a técnica musical e toda a história dos afetos que ela proporcionara pela história da música. 

Não foi por acaso que introduziu o termo "dionisíaco" para a filosofia moderna. Esse filósofo obteve a mesma visão que os gregos possuíam nos estados extáticos ao ouvir a flauta nas apresentações da tragédia grega, que tocava em homenagem a Dionísio. O culto a esse deus se dava nas procissões de cunho religioso nas cidades gregas. Foi trazido para a dramaturgia principalmente por Esquilo. As peças teatrais vinham de episódios já conhecidos do público que vinham da mitologia grega, mais especificamente da teogonia, a história dos deuses escrita por Hesíodo. No entanto, era na música, justamente com a flauta tocada em honra, reverenciando Dionísio, que o público podia sentir uma elevação do espírito e uma transformação no seu comportamento e aceitação do infortúnio. Esses estados extáticos produzidos em função da melodia da flauta eram os mesmos sentidos nas procissões de cunho religioso. 

O teatro aí se torna palco da vontade dos deuses e palco de uma extensão da religiosidade das ruas, trazendo através da dramaturgia um "mix" de literatura, música e crença ferrenha aos deuses. O texto dos dramaturgos confirmava a sina dos homens através dos desejos divinos. Enquanto as predições do oráculo não se cumprissem os homens estariam fadados ao infortúnio, sendo esse geralmente o desfecho e a mensagem da tragédia que trazia à tona, que o destino carrega a vida para onde quer, sem que os homens reclamem dele, aceitando-o como um pacote divino, uma espécie de predestinação. A compreensão desse evento era o trágico, mas se fazia compreender mais profundamente através da música. 

O ouvido de Nietzsche 

Afinal todo esse conhecimento, a publicação póstuma das aulas de Nietzsche, está contida no livro que o filósofo não viu publicado: "Introdução à tragédia de Sófocles", onde pode reconstruir e com um olhar num futuro, entender o que se passou na época das tragédias. Conhecia profundamente todos os períodos históricos musicais, passando pelo canto gregoriano na Idade Média, renascença, o barroco de Bach, o classicismo de Mozart e Beethoven, o romantismo, o impressionismo de Liszt seu contemporâneo e o incrível Richard Wagner, sua futura decepção. 

Não foi à toa que descobriu no fundamento da tragédia grega, especificamente na música do coro ditirâmbico, uma força que extrapolava a simples literatura que estava contida no enredo. Essa, falada pelos atores, era a cena onírica de Apolo, contudo, as intervenções do "corifeu" e do coro acompanhadas da música é que levavam o público a estados extáticos que mencionamos a pouco. Mas como entender profundamente o que Nietzsche nos fala sobre esses estados? Só, realmente, tendo a "visão", ou melhor mais acertadamente o "ouvido de Nietzsche", ou melhor, sua compreensão musical. 

> Por ser um tema muito abrangente e muito importante, por tocar na educação e formação musical, decidimos dividir o tema em partes. Clique aqui para ler a Parte 2: O livro e a pauta musical

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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