(Fotos: Divulgação)
Marillion: Grande mudança para Marcio Martílio
Todo mundo tem uma história com música, um momento, uma lembrança que ela traz. Querendo ou não, simplesmente vem e nos remete àquele instante, e somos até capazes de sentir o perfume. Uns gostam de rock outros de jazz, blues, MPB, tango, funk, R & B e por aí vai. Deixando de lado a questão do gosto, que é muito pessoal, foi pensando nisso que tive a ideia de convidar algumas pessoas a falarem do assunto, seja de uma música, banda ou gênero que de alguma forma tenha mudado a sua maneira de ver a vida ou a de ouvir música.
Meu convidado desta semana é Marcio Martílio de Souza, colecionador, blogueiro, profundo conhecedor de rock, dono de um senso de humor de dar inveja a qualquer ser humano e um grande amigo.

Marcio Martílio: “O Marillion está sempre entre minhas bandas favoritas, especialmente no que se refere ao gosto pela música progressiva”
Marillion e o movimento neo prog
> Pedras preciosas - Nos anos 80, qualquer moleque que se reconhecesse como roqueiro tinha de saber cantar de cor as músicas da Legião, Paralamas, Titãs e arranhar no inglês para entender o sarcasmo melancólico que Morrisey & Cia. faziam no Smiths, ou as loucuras dark que Robert Smith desenhava no Cure. Eu não. Morador de subúrbio, pobre e com pouco acesso à cultura da Zona Sul carioca, restava apenas ao moleque curioso descobrir na mídia limitada da década onde estavam as verdadeiras pedras preciosas da música. E foi o que fiz. Enquanto a maioria via e curtia o Chacrinha, eu mal esperava pra assistir ao insano, totalmente improvisado e hilário “BBVideoclips”, comandado na TV por Eládio Sandoval e dirigido por Billy Bond (ex-Joelho de Porco), pioneiro no escracho via rádio na extinta Cidade FM.
> Rock progressivo - Através do supracitado programa e, lógico, da descoberta da Flu FM (a rádio que mudou a cara do Rock Brasil), fui descobrindo novos horizontes, novos subestilos do rock que jamais imaginei existirem. Dentre todos os estilos que conheci, um me invadiu o cérebro, instalando-se definitivamente, como um neurônio artificial programado para me fazer ouvir boa música: o rock progressivo! Era algo totalmente diferente dos três acordes básicos do rock. Não havia ali as músicas curtas, de refrães fáceis e repetitivos, os compassos simples ou a batida dançante. Tudo era complexo, parecia que por vezes os músicos se perdiam na melodia, para se reencontrarem mais à frente, serenos, como se a música tivesse durado meros cinco minutos (o tempo médio que a mídia radiofônica exigia para incluir uma música em seu set list) e não os infindáveis 13, 15 ou 22 minutos que por vezes ocupavam todo um lado de um disco de vinil (aos que não o conheceram, minhas condolências).
> Genialidade - O alto custo na manutenção de uma coleção de rock progressivo (por conta da dificuldade em se conseguir álbuns raros e com tiragens muitas vezes baixas) desanimaria qualquer um, menos quem tinha uma avidez por conhecimento musical tal que economizava para comprar um disco, quando os amigos compravam três ou quatro de rock, por assim dizer, convencional. Das bandas que passei a ouvir e admirar, uma das que mais me marcaram, nem tanto pela complexidade dos arranjos, ou das letras, mas pela genialidade de justamente unir duas vertentes supostamente indissolúveis, o pop rock e o rock progressivo, foi o Marillion.
> Uma rara visão - Pioneiros no que se posteriormente convencionou chamar de neo progressivo, o Marillion, inicialmente batizado como Silmarillion, mas logo rebatizado por conta das ameaças do espólio da família de J.R.R.Tolkien (ver “O Senhor dos Anéis”) conseguiu, com rara visão artístico-empresarial, fundir o lirismo e as longas melodias do progressivo tradicional com a fugaz cultura das pop songs, menina dos olhos de gravadoras e rádios mundo afora. Agora era possível ouvir algo que não era feito pra dançar, nem pra se cantar repetidas vezes, mas com uma “dissolução” capaz de “iludir” o ouvido médio, desacostumado com as demoradas suítes de medalhões como o Yes, King Crimson, Gentle Giant, e outros pesos-pesados do movimento.
> Espetáculo à parte - As capas, então, são um espetáculo à parte, pois o artista (na melhor acepção da palavra) Mark Wilkinson colocou no papel, como poucos o fariam, as ideias que a banda lhe trazia como arte para iluminar sua obra. Levando-se em conta as limitações técnicas, hoje ultrapassadas pela tecnologia digital, vê-se o que um gênio é capaz de fazer ao traduzir em imagens o que lhes mostram com música. “Script for a Jester’s tear” foi o marco no movimento neo prog (especialmente a faixa-título, até hoje capaz de impressionar pela incrível “citação” ao estilo de Peter Gabriel no Genesis, marca que perseguiu a banda por toda a primeira fase).

”Fugazi”, com seu experimentalismo eletrônico, foi uma prova de que a fórmula encontrada pelos bretões tinha seu valor. Aqui, Fish começava a se soltar em suas viagens lisérgico-líricas, buscando uma identidade que o distanciasse de sua maior referência, sem, entretanto, renegar as influências de bandas como o Floyd, o Rush, Yes e outros.

> Tudo é possível - Mas é em “Misplaced Childhood” que o Marillion do (literalmente) gigante vocalista Fish, do exemplarmente técnico guitarrista Steve Rothery, do excelente baterista Ian Mosley (ex-Trace e substituto de Mick Pointer, que só gravou o primeiro álbum), do tecladista Mark Kelly e do baixista Pete Trewawas, dá as cartas, mostrando ao mundo que era possível fazer rock sem simplificar muito as coisas para o fã pouco afeito à “garimpagem”, que era possível desenvolver musicalmente romances sem excesso de açúcar e que a busca pela essência de uma “persona” não era tema apenas de grupos literários ou acadêmicos, podendo frequentar com total liberdade as rodas de conversas dos roqueiros, ora tratados como seres descerebrados e focados apenas em música escapista, urros e arremedos de dança... coisas da imprensa “não especializada”.

> Personagem - “Misplaced...” trata de um personagem que busca reencontrar as memórias de sua infância, na tentativa de entender as causas de frustrações amorosas e desequilíbrios mentais. A suavidade do tema de abertura, seguido pela intensa, intimista e incrivelmente (para um grupo prog) popular “Kayleigh” (que muitos dizem ser um “disfarce” sobre o nome real de uma ex-namorada de Fish) nos leva de encontro à excelência técnica da banda, que trabalha a todo tempo no álbum, praticamente sem parar, formando camadas de compassos aparentemente incompatíveis, que vão desenhando no cérebro do ouvinte o cenário cantado por Fish. Cada etapa do álbum nos leva a uma situação e sentimento diferentes, seja de tensão (“Bitter suite”), angústia (“Waterhole”), dúvidas (“Childhood’s end?”) e finalizando com a esperança de que a personagem tenha encontrado finalmente sua identidade, podendo então encarar o mundo real (“White feather”).
> Prazer musical - O impacto de “Misplaced Childhood” sobre meu gosto musical foi tremendo, que mergulhei na busca por outras bandas que me trouxessem o mesmo sentimento de prazer musical conquistado pela banda do “Arlequim” (personagem que aparece com frequência nas capas da chamada “fase Fish”). E o mergulho não foi em vão, visto que de cara encontrei contemporâneos dos caras com a mesma pegada e misturando pop, prog, punk (!) e até um pouco da psicodelia dos anos 60 em suas obras. Twelfth Night, Pendragon, IQ, Pallas, entre tantos outros, foram os desbravadores do neo prog, que, curiosamente, é para surpresa minha pelo menos, renegado por muitos fãs do progressivo tradicional. Vai entender...
> Obras atemporais - “Misplaced...” faz parte até hoje de minha coleção de obras musicais atemporais e dá certo sentimento de orgulho saber que pude descobri-los pouco tempo depois do lançamento dessa que é, sem dúvida, sua obra-prima. O Marillion de hoje não é, nem de longe, a sombra do que já foi, muito embora se deva reconhecer o talento de Steve Hogarth, que já gravou mais de dez discos substituindo Fish, que saiu em 88, após intensas batalhas causada por estrelismos, acusações de consumo excessivo de drogas e álcool e um mal disfarçado sentimento de inveja por parte de alguns integrantes, por saber que o quase sempre mascarado vocalista (fiel discípulo da escola do já citado Peter Gabriel) detinha boa parte da atenção do público, graças a seu carisma e presença de palco. Por tudo isso, o Marillion está sempre entre minhas bandas favoritas, especialmente no que se refere ao gosto pela música progressiva.
