(Foto: Divulgação)
Gustavo Caverzan: Banda Ávora di Carlla
Todo mundo tem uma história com música, um momento, uma lembrança que ela traz. Querendo ou não, simplesmente vem e nos remete àquele instante, e somos até capazes de sentir o perfume. Uns gostam de rock outros de jazz, blues, MPB, tango, funk, R & B e por aí vai. Deixando de lado a questão do gosto, que é muito pessoal, foi pensando nisso que tive a ideia de convidar algumas pessoas a falarem do assunto, seja de uma música, banda ou gênero que de alguma forma tenha mudado a sua maneira de ver a vida ou a de ouvir música.
Meu convidado desta semana é Gustavo Caverzan, da banda Ávora di Carlla.
Se essa rua...
> Fenômeno da arte - Quando fui convidado para descrever uma experiência que tive com alguma obra musical e como tal relação promoveu um momento especial na minha vida, pensei que, antes de lançar mão de qualquer fato exemplar vivido por meio de uma audição musical específica, seria oportuno falar um pouquinho sobre o fenômeno da arte em sua estrutura anunciadora mais fundamental, a saber, enquanto o lugar privilegiado para se compreender e sentir no coração o que se é lançado ao trânsito do real em sua pretensão de verdade.
> Olhar interior - Então, quando descrevemos as coisas incríveis que vivemos na relação com a arte em geral, na verdade, estamos destacando certa experiência de deslocamento que nos direcionou para esse lugar especial, em cujos exercícios da compreensão e do ânimo da vida se mantiveram acentuados. Assim, o que na banalidade do dia a dia se apresenta, na maioria das vezes, impregnado de indiferença e propício à promoção de um contexto opaco, ordinário e desinteressado; na expressão artística, por sua vez, pode ganhar uma força de sentido extraordinário. A obra de arte, ao arrebatar pelo diálogo o espectador que assiste e contempla interessado a sua apresentação de mundo, permitirá que o mesmo participe do momento criador habitado na interpretação de todo aquele que conquista a sua grande experiência. As coisas já não podem ser tão somente como antes, são potencializadas num acréscimo qualitativo de sentido, de vigor, de força, de expressão. Uma perspectiva mais colorida é pintada no olhar interior de quem ama a realidade nascitura do auscultar.
> Jogo da arte - Aquele que assiste ao espetáculo artístico orientado pelo dizer da obra contemplada sustenta uma posição de vivificação de sentido da coisa visada “parecida” com aquela que o gênio criador experimentou ao conceber sua obra ante a efetividade por ele participada. Assim, é assistindo ao nexo do mundo que o artista erige sua verdade pela plasticidade da obra de arte; e, por sua vez, é assistindo ao espetáculo da obra de arte criada pelo gênio, que o espectador inaugura um mundo em seu sentido de verdade. É claro que as possibilidades de compreensão, oriundas da relação com uma obra de arte, mantém-se abertas às novas construções de sentido em sua misteriosa riqueza de acrescimentos de ser. O que permite ao espectador, por exemplo, ter uma compreensão coerentemente diversa daquela que o próprio criador da obra desenvolveu. Logo, pela concepção do exercício genial do artista - que transfere para a sua obra a verdade de uma situação de mundo compreendida em sua sensibilidade de ausculta - torna-se a obra de arte o solo fecundo, o lugar privilegiado para o advento da verdade. Cabe então ao espectador se tornar partícipe dessa dinâmica pertinente ao jogo da arte para, assim, envolver-se com tal anunciação.
> Educação estética - A partir disso que aqui descrevemos rapidamente, considero a educação estética de fundamental importância para a formação humana: a Paidéia pela perspectiva da anunciação artística. Mas, voltando aqui a nossa atenção para a descrição pontual de algum fenômeno de arrebatamento causado em minha pessoa pela força da música, em meio a um vasto repertório de fantásticas ocasiões já vividas ao longo da minha história, entrego-me às reminiscências ainda da infância. Assim, desde um tempo imemorial algo me vem ao encontro e expectora em meu peito como um raio de sol. Algo que mostra as minhas primeiras e frutuosas experiências musicais pelas cantigas proferidas do regaço gostoso da mamãe. Eis que pela voz de um mundo de imagens fantásticas cantadas pela minha mãe eu já ouvia todo um conteúdo, em sua pretensão de verdade, articulando-se por meio de um afetivo nânanenê: “para o meu, para o meu amor passar”.
> Alegoria espetacular - Essa mesma cantiga popular que já me anunciava uma rua fabulosa em sua alegoria espetacular, 30 anos depois, permitiu-me reconquistá-la numa inspiração a desenhar mais um círculo de abraço na minha história. Um acontecimento que simplesmente me solicitou uma relação de doação a por frente a frente gigantes. Desta vez, com a minha amada filhinha Elisa. Nasce um poema, um aceno de olhares a encontrar pai e filha permitindo-se ao vital exercício de construção dos próprios destinos. E aquele belo horizonte já inspirado por seu espetáculo musical, novamente retorna através de outra-mesma nova aurora a cantar algo que em sua atualidade diz mais ou menos assim:
Se essa rua, se essa rua fosse um livro
Com letrinhas todas cheias de encantos
Eu contava uma estorinha bem bonita
Onde toda humanidade era feliz.
Essa rua, essa rua tem um nome
E se chama e se chama solidão
Onde todos moram ao lado bem distantes
Para próximos viverem com amor.
Nessa rua também mora um sonho
Um gigante florescido de infâncias mil
Que alimenta o coração das palavrinhas
Faladas pela ausculta atenta da anunciação.
A rua que eu canto é feita de imaginação
É feita de poemas onde a beleza revela seu olhar.
E quando uma mamãe a canta baixinho no ninar noturno
Do seu pequenino grande sol da manhã
Uma linda página é esculpida na cosmogonia primordial
Deste fantástico universo chamado respiração.
Pensar estorinhas é caminho que já ladrilha todo ler.
Ler realidade é livro que já se escreve em toda humanidade.
