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Olhar Crítico

A luz que se apaga

Triste imaginar que com novas ferramentas e novos horizontes musicais a música popular permanece atrelada ao transporte animal, como uma carroça

Música  –  29/01/2019 09:59

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(Foto Ilustrativa)

A música popular capenga nunca conseguiu acompanhar o avanço da sempre contemporaneidade

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi 

A música é a luz do mundo. Não é composta de fótons, mas outro tipo de onda, aquela que ouvimos entre 20 hertz e 20.000 hertz. Encurralados nesta faixa de 1980 hertz apreciamos o som do mundo, o som do universo, que no ruído branco tem sua maior expressão (o som do ruído branco é a explosão do big bang). Por ser demais aos nossos ouvidos e nossa compreensão, principiou o homem a esquartejar, fatiar esse espectro, fragmentando-o no que chamamos música. Esse fatiamento originário como o pio da coruja, na antiga Grécia, deu inicialmente, a origem da melodia. Arrastada e inconclusa, solitária clamou a presença de um apoio pedal das tônicas, dominantes e subdominantes. Porém, a tonalidade não emergia, mas só sua sombra, consequentemente, os modos das polis e cidades estados gregas firmaram em seu domínio uma altivez e chauvinismo, representando a ideia política do Ethos grego. 

Platão recomendava, junto à Paidéia contida na sua República, que os guerreiros antes das batalhas não ouvissem melodias que os enfraquecessem. Já nessa época a música, pós-socrática, já interferia na conduta humana, já se instalava a era pós-Damião. Cada cidade estado possuía seu Modo musical, junto às variações da escala pitagórica; cada cidade observava na sua escala intervalos de semitons diferentes das outras polis.  

Transformação pelo esgotamento 

Mesmo com toda essa energia e desenvolvimento orgânico, a música sofreu uma transformação pelo seu esgotamento, o que é plausível em toda a apresentação técnica e estética da arte. Esgotar-se é beirar o “plágio”, um movimento perigoso de composição onde principalmente as melodias principiam a assemelhar-se. A mesmice na arte acontece quando os rostos das obras começam a confundir-se, já não se esboça o novo. No seu desenvolvimento, a música para não se esclerosar inventou anticoagulantes para que seu cérebro não senilizasse. Já velha e caduca, resolvia repaginar num super-lift, cuidando de seus telômeros, para que esse não se esgarçasse, dando origem a uma jovialidade contemporânea. 

Passamos à Idade Média, onde imperou o canto gregoriano com seu baixo pedal, condenando as quintas e oitavas paralelas como malignas. A renascença renasceu e os modos gregos voltaram à tona, a música ficava feliz novamente e o coro voltava a se misturar aos espectadores. Precipitando-se ao infinito, o período barroco deu asas de anjos aos compositores que o seguiram; as tonalidades apareceram e o mundo sorriu para elas como a pedra de toque almejada pela humanidade e que os gregos não tinham descoberto por não haver finalidade, mas objetividade de que os modos bastariam. 

Remédio musical 

Problemas como a afinação dos instrumentos perturbaram alguns tons não muito naturais e usuais. A escala de Dó Maior estava em paz, contudo, não a de Sol sustenido Menor, ou a de Fá sustenido maior. Por inventividade da genialidade de Bach, esse temperou as escalas acalmando o universo musical, entretanto, repartindo os problemas da afinação, não os resolvendo por completo. Enfim, acertadamente, apaziguar-se-iam os nervos e pela goela abaixo aceitava-se o “temperamento” como um remédio, mas não como uma cura. Se beneficiaram dessa profusão de escalas maiores e menores, principalmente, os compositores clássicos e românticos: Haydn, Beethoven, Liszt, Chopin, Wagner e muitos outros. 

Porém, as escalas e tonalidades começavam a ser trocadas nas composições para dinamizar a grande descoberta - o que era enfadonho e desgastado começava a se tornar camaleônico. Já por essa profusão, como num desmoronamento, veio uma avalanche, como um soterramento: o dodecafonismo; e a atonalidade tomou lugar no modernismo musical. Os pés se tornaram cabeça e os braços pernas; estávamos entrando no período “salada de frutas”. Não contente com essa salada, feita com doze frutas-sons, introduzimos “choques” e o eletrônico invadiu a prateleira do nosso mercado musical. Esse empório se transformou em um vale tudo, começando pela ajuda de Nikola Tesla, o grande cientista da eletricidade e do magnetismo. Estávamos na era dos elétrons e dos fótons, onde Edgar Varese se divertia e nos confundia com suas maravilhosas composições rítmicas e melódicas eletrônicas. 

Uma porção de batatas fritas  

A música popular capenga nunca conseguiu acompanhar o avanço da sempre contemporaneidade (a cada época possuímos uma nova contemporaneidade; essa não é o que é, mas o que se foi e sempre será). Na música popular, regredimos às tonalidades em alguns estilos, retornando ao passado até ao retorno dos “modos” gregos; o lá menor por exemplo, onde são compostos a maioria dos hits, onde o meio Tom (semitom), está do terceiro para o quarto grau, e do sétimo para o oitavo. Após o esgotamento dos “modos” ainda insistimos em sua volta para a revolta do pensamento e gosto contemporâneo. A música popular está sempre um passo atrás, para não dizer: à milhas e milhas de distância, e pedir uma porção de batatas fritas em vez de um banquete colossal chinês.  

A vanguarda urge e a música popular como uma voz menestréica medieval coloca o pé no freio como uma tartaruga que não consegue acompanhar Aquiles. Seu andar ritmado, porém, rói como uma engrenagem de moinho, pulverizando o trigo ou o milho, para deles fazer a farinha do seu bolo. A luz que acendeu o flash contínuo para o infinito vai perdendo sua força e seu zelo na escalada para o novo, inserida na contemporaneidade: “A luz que se apaga”. Todo o advento e construção, associado ao desenvolvimento das tonalidades se perdem, e a música de vanguarda fica no vácuo. Um abismo se instala, uma fenda enorme se abre, separando o erudito vanguardista e a música popular agora medieva. Por quê? A comida dos astronautas não é exatamente o que se come na Terra; não podemos, por enquanto, levar um fogão à lenha para o espaço. A música popular não terá estômagos para digerir o avanço que a vanguarda propõe. A distância do apagamento da luz da música é fato, a menos que a coloquemos na grade escolar até o ensino médio. Saborear e curtir sabores necessita informação de qualidade e história da cultura. O modismo já não basta, a cozinha contemporânea francesa e espanhola requerem explicações ao degustar. 

Uma luz retardada e confusa 

O retrocesso no entendimento da grande música passa por um espaldar; um encosto da educação e desleixo pela antiga Paidéia. Na Grécia, a educação infantil, passava pela ginástica e pela música, hoje cabulam-se aulas de educação física e inexistem as aulas de música que no passado foram obrigatórias na época em que Villa-Lobos incentivou o canto orfeônico. Enquanto o Ethos grego não voltar à tona e o coro ditirâmbico não representar os anseios e verdades do devir, estaremos divididos e a luz da música terá que retroceder. A luz se enfraquece a cada dia e sua velocidade já não é a mesma porque está retardada e confusa. Seu apagamento, por enquanto, não tem volta. 

A música de vanguarda é, às vezes, entendida na música de fundo do cinema, quando distraidamente, ouvimos aquela música, composição atonal, e não nos damos conta de que estamos saboreando aquilo que preterimos; isso porque a cena com sua imagem, camufla o que não é aparente, mas se fechamos os olhos nos concentrando na música, damos um passo atrás e o pré-conceito medievo repulsa a obra cinematográfica. Triste imaginar que com novas ferramentas e novos horizontes musicais a música popular permanece atrelada ao transporte animal, como uma carroça. Justifica-se, contudo, porque a letra com sua imagem afugenta o olhar semiótico crítico e o julgamento valorativo da obra passa a ser literário e não mais musical. Essa foi a grande crítica de Nietzsche contra Wagner que passou a enxergar microscopicamente na ópera wagneriana, um ar político e social, carregada pelo texto que apagava a luz dionisíaca da música. 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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