(Foto Ilustrativa)
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“Biltre”, que quer dizer pelo dicionário: vil e infame, é a face da modernidade que ri do real
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> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi
Ouvir música hoje já não é como nos séculos passados. A imagem virtual se confunde e se mistura à música fecundando-a para formar um novo produto. Desde a Grécia Antiga, a música esteve atrelada à imagem “real”, ainda não se cogitava o abuso que a virtualidade iria criar. A música era cantada na polis de diversas maneiras, onde esteve conjugada se fez presente nas tragédias, cantada pelo coro ditirâmbico com seus 15 sátiros. Na Idade Média, esteve presente com os trovadores, menestréis e divertia a corte. O canto gregoriano, no medievo, acompanhou todo o rito religioso nessa época. Veio a Renascença e o Barroco que atingiram seus apogeus, onde nunca a Idade Média pode imaginar com seu canto monofônico.
No Barroco as óperas foram avante culminando seu encanto no século XIX. Ainda a música aliada à imagem real, com as óperas e os salões palacianos, não imaginava estar presa ao mundo dos pixels. A fotografia emergente disparou suas setas, aliando-se a cupido nesse século e começou a namorar a música, flertando, piscando os olhos, procurando um namoro duradouro. Foi finalmente com o advento do cinema que a paixão se tornou em noivado e casamento. As bodas sensatas clamaram por uma comitiva, essas se banquetearam, se fartaram. Estávamos em pleno século XX, e a música junto com a mentira da imagem fez o homem chorar, rir, se apaixonar. Grandes temas musicais foram desenvolvidos para potencializar a catarse, associados às imagens.
O cinema acostumado às performances ao vivo foi deixado solteiro, divorciando-se. Casa-se novamente, com a fita magnética sonora, bela jovial. Um pouco mais à frente no tempo, a gravação digital, saindo do casulo, transformada, aprisionou os sons transformando-os em bits, em estruturas matemáticas. As imagens, tanto da fotografia, quanto das fitas cinematográficas, quanto dos DVDs, foram substituídas por algoritmos que cabiam entre os dedos, os pen drives minúsculos surgiram no mercado. Mesmo com a miniaturização dos sistemas de armazenamento, os clipes, ainda em vídeo casset, se mostravam como uma mágica nunca dantes imaginado pelas óperas wagnerianas.
A música sempre soará tradicional
Com o avanço do meio digital, as edições das imagens conseguiram um maior dinamismo, típico da velocidade que o contemporâneo proporcionava. A gravação dos sons recebeu efeitos extraordinários, entretanto, num ar comedido, parecido ainda com o analógico, tímido, porque a música sempre soará tradicional. As imagens nos clipes nos surpreenderam, com um ataque voraz, agressivo, psicodélico, se travestiram camaleonicamente, com traços, cores, manchas berrantes, formas ameboides. As imagens das figuras humanas se transformavam e se deformavam, como elásticos, num malabarismo que as edições com seus efeitos imagéticos podiam transformar.
O cinema, grande precursor dessas deformações, principalmente com os desenhos animados, que tinham que inventar um extra-real, conjugou figuras humanas e desenhos delas, transformando a captação da imagem comportada das fotografias de família do século XIX em uma mutação virtual, para desnortear o público e o espectador. Agora, acostumados a tantas deformações, o público não abre mão dos vídeos com manipulações psicodélicas e com grandes cenários. Estamos rumo ao esquisito, surreal, que dariam inveja a Salvador Dali e René Magritte. É bom identificarmos que o surrealismo pictórico deu o pontapé para a loucura imagética. Já no florilégio desse período, o cinema já havia se aproveitado dos desejos surrealistas. Apesar do surto surrealista, o cinema já havia se iniciado assim, o filme “Viagem à Lua”, roteiro e direção de Georges Méliès, já petrificava a ideia de um mundo impossível, virtualizando as ideias numa loucura surrealista.
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Filme “Viagem à Lua”, do ilusionista e cineasta francês Georges Méliès
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Nessa época a imagem no cinema, estava muda, amordaçada pela música real (cameristica), essa, tinha ciúmes da imagem já futurista, irreal, virtualizada. Mais tarde, aprisionada nas fitas, a música se juntou felizmente no mesmo ninho da imagem e juntas coabitaram para o deleite dos homens reais, que gostaram de mergulhar nos corais aquáticos da virtualidade, para habitar outros meios, o novo virtual musicalizado.
Agora, em nosso tempo, os clipes empurram os hits, enaltecem a música colocando-lhe uma coroa, símbolo de um reino futuro. É bem verdade, e é bom relatar, que a música não mudou muito, não se transmutou como a imagem, apesar dos efeitos sonoros surpreendentes que os novos sons dos sintetizadores oferecem. É bom que se confirme que a imagem hoje empurra a música. Mesmo que apagada pela pobreza dos arranjos, pela minguada harmonia que não passa costumeiramente de três acordes e uma melodia enjoativa, a imagem reascende a música menestréica dando-lhe alma nova, uma roupa real, um manto bordado em ouro, com uma pompa inigualável.
A imagem veio em “socorro” da música. A luz que se apagava agora reascende, como uma fogueira que faz uma sombra nas paredes de uma caverna, os homens só veem sua silhueta. A imagem vinda de fora avisa à música, que está sentada e acorrentada, para se levantar, desacorrentar-se e contemplar o real que está lá fora. É como o mito da caverna de Platão, porque a música como os homens estava estacionada na contramão e precisava conhecer o real fora da caverna. Contudo, a imagem estava do lado de fora “rindo” das canções agrilhoadas e perdidas num mundo parado, escravizado pela tonalidade e modalidade da música popular - pela prisão das composições repetitivas. A imagem convidava a música a conhecer o mundo libertador. A sombra era sempre a mesma, a música sempre a mesma. Do lado de fora da caverna mora o virtual e o irreal.
Já não conseguimos ver vídeos se esses não estão manipulados, psicodelizados. Se os vídeos forem comportados, sem deformações de imagem, preferiremos ouvir um violão acompanhando uma canção ao lado de uma fogueira em Visconde de Mauá, pegando tomates num sítio. Não há mais espaço para a imagem comportada, a canção para avançar nos meios virtuais, nos YouTubes, deverão transmutar o mundo oferecendo ao espectador uma experiência dantesca. As imagens literárias da “Divina Comédia” de Dante Alighieri mereceriam uma composição musical de acompanhamento ao seu nível. Suas imagens mesmo descritas em literatura surpreendem os clipes atuais. É nesse sentido que as imagens virtuais trilham para construir um mundo que não é um mundo normal, elas criam um mundo extrafísico, onde as pessoas flutuam, a gravidade é desprezada. Os unicórnios nesse mundo fictício das imagens existem, porque estão estampados nas mochilas infantis.
Um outro mundo
Na era dos pixels, já a imagem deverá ser distorcida porque habita e pertence a um outro mundo. A fotografia ou o cinema nunca serão a mimese do real. Essa impossibilidade reside no fato que o real é o real, a imagem é a imagem. Se analisarmos as fotografias dos nossos celulares dos antigos modelos que usamos, perceberemos a diferença dos tons de cores. As imagens estão cada dia mais definidas. Chegamos à conclusão que nunca serão como o real. Já que nunca serão reais, melhor que sejam virtuais e que não se pareçam com o real, mas uma sombra que cria personalidade e sai da parede da caverna como uma autônoma.
As sombras que eram a música aprisionadas e acorrentadas agora trocam de lugar com a imagem livre, exterior. As imagens se apresentam com personalidade bradando: “Eu sou”, como a voz que se apresentou a Moisés, o líder dos hebreus, como um deus que não é desse mundo real. As imagens das sombras autônomas saem para fora, criam adeptos para sua seita que perverte os homens, conduzindo-os ao seu mundo imaginário, libertando a música de sua caverna platônica. O rito macabro se inicia e diz:
- Desliguem-se do real, porque agora sou uma sombra autônoma que vagueia pelo mundo.
Assim, o mundo das sombras das redes sociais vive enganando os amigos com fotos que não são deles mesmos, infestada, infectada, grosseiramente e abundantemente lotada de fotoshop, aliada a uma paisagem escolhida ao fundo, fazendo poses e caretas, como se no mundo real social os indivíduos das redes andassem pelas ruas e pelos shoppings retorcendo a boca ou mostrando a língua para os transeuntes. A imagem das redes é de outro mundo, um mundo fabricado pela loucura surrealista, são sombras fantásticas. Os clipes musicais das bandas e dos cantores não poderiam deixar de acompanhar esse mundo, já que está constituído como a face da modernidade, onde a virtualidade já dita as regras para a convivência dos homens neste novo mundo atual, o dos pixels.
Esse novo ar virtual, novo, “Biltre”, que quer dizer pelo dicionário: vil e infame, é a face da modernidade que ri do real. Os clipes das bandas nunca serão os mesmos, cada vez mais “Biltres”, vis, infames, porque desagregam o real, denunciando a inversão dos valores sociais que surgiu com a fotografia acompanhada da música. Essas bandas denunciam o comportamento conservador que agrilhoa uma sociedade livre.
“A luz que se apagava reascende”. A música agora tem um protetor e guardião: “A imagem virtual distorcida”. Esse casamento entre a música com a imagem, para a felicidade dos pixels, esses seres cada vez menores, ainda nos dará uma prole inusitada e estranha no futuro, serão seres amorfos. Ela nos fará surpresas que nos questionará se realmente existimos nesse mundo, porque o virtual se apoderará do real. Descartes estará rindo de nós no futuro, dirá: “eu bem que avisei”. O mundo do pensamento, que é a face do mundo virtual, tal qual Descartes elucidou, estará misturado ao mundo virtual e com o transumanismo que vencerá a morte física. Os clipes não morrerão nunca se estiverem bem armazenados. Serão a marca profunda de uma humanidade transformada.