Publicidade

RH

Caminhos da Música (1)

A música te conduz a algum lugar

Ouvindo música, nos movimentando ou inertes

Música  –  30/03/2020 19:42

9266

 

(Foto Ilustrativa)

A tecnologia, no seu desenvolvimento do áudio, proporcionou a miniaturização de aparelhos que reproduzem os sons naturais originais

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (filósofo) Ricardo Yabrudi 

Aparentemente, para o nosso melhor entendimento musical, geralmente ouvimos quaisquer modalidades artísticas musicais - algumas vezes imóveis, outras sentados, outras deitados. Por isso, na maior parte dessas audições, não estamos dançando ou nos movimentando, num ato que expressa a resposta do corpo inerte para uma atenção especial e de honra para com a música.

No entanto, andar ouvindo música hoje em dia é um hábito comum. A tecnologia, no seu desenvolvimento do áudio, proporcionou a miniaturização de aparelhos que reproduzem os sons naturais originais. Os gramofones de outrora, pesados e com parca resposta de frequências, hoje têm em seus análogos um espectro variável de produtos oferecidos por dedicadas indústrias. Caminhar ouvindo música é o retrato de um comportamento sem volta. Os headphones e os pontos auriculares minúsculos proporcionam ao homem moderno a facilidade de que ele possa dançar enquanto caminha. Esse deslocamento que a tecnologia proporciona, possibilita o que no passado era impossível - as orquestras não podiam andar acompanhando um único ouvinte. Entretanto, as festas e os cortejos de rua sempre estiveram presentes nesta caminhada dos músicos que andavam nestas procissões, emitindo sons para os espectadores. Exemplos mais contundentes foram as festas de primavera no culto a Dioníso, na antiga Grécia. Também são exemplos as bandas de interior que marchavam nas ruas de Minas Gerais, com seus clarinetes e bombardinos, quando faziam o som dos dobrados se propagar através da urbe.

As procissões sacras cristãs, que se manifestavam na quaresma, com seus hinos e cânticos, tem como análogo os nossos aparelhos que se deslocam. Hoje, esses sons das procissões podem estar tocando num único ouvido de forma individual pelos headphones. A diferença está na miniaturização e principalmente no aprisionamento das informações em bits nos modernos aparelhos de áudio. Porém, todo este aparato tecnológico veio à baila para que o homem pudesse se deslocar ouvindo música nos lugares mais inóspitos, porque estaria amparado pela energia de uma bateria. O homem, agora, poderia ouvir jazz e sinfonias no monte Everest. A música, já em algumas décadas, pôde ser reproduzida por pequenas caixinhas metálicas através de um complexo circuito eletrônico digital.

A perda do conteúdo estético, o kitsch e o banal

A banalização e o desconhecimento da informação da figura de uma orquestra fizeram do som natural que sai de um oboé ou de uma flauta transversa, por exemplo, talvez o mesmo desconhecimento e banalização de uma criança da cidade, a que não mora no campo, que possivelmente não saberá que o leite sai do úbere de uma vaca. Algumas delas podem pensar brotar o leite de uma árvore, na qual seus frutos são caixas ou saquinhos contendo o referido produto que só conhece nos supermercados, desconhecendo sua verdadeira origem. Toda essa miniaturização e aprisionamento, no caso dos sons, “esconde” a verdadeira realidade dos instrumentos musicais. O pensamento popular reconhece hoje o violino por sua larga disseminação nas orquestras infantis populares. Essa banalização da figura dos instrumentos, através dessa miniaturização, esconde uma realidade que foi instaurada no passado. Na Grécia Antiga, todos conheciam muito bem o “aulo” dionisíaco e a “Kithara” apolínea, pois desfilavam nos cortejos a Dioníso - tudo acontecia a olhos vistos. O homem sertanejo de tempos idos conheceu bem o seu pífaro, sua acordeão, a zabumba e o triângulo. Hoje a visão instrumental está escondida, abolida, trocada pelo parco som dos celulares. Os vídeos, abundantes na internet, no entanto, não escondem essa imagem, mas também não escondem o som velado que a tecnologia do áudio ainda não conseguiu imitar com perfeição. Nada melhor que ouvir e ver uma orquestra ao vivo. Essa terrível banalização, através de um pretenso avanço da tecnologia do áudio e das imagens, só afastou o grande público e as grandes massas que percebiam honestamente o mundo-natural-musical das salas de concerto. No passado, só podíamos e conseguíamos ouvir se estivéssemos presencialmente nas apresentações sinfônicas, ouvindo a 120 Db - uma pressão elevadíssima. Hoje controlamos o volume por um botão ou um deslizante virtual - somos os senhores do volume. Nas apresentações orquestrais, a única possibilidade de ouvir com menos intensidade é o de sentar nas últimas poltronas. Nos tempos em que não existia a tecnologia da miniaturização e aprisionamento do áudio, o real era o real, e não possuíamos o controle. Hoje, controlamos o natural de modo irreal-virtual; como se pudéssemos diminuir o doce do mel por meio de um botão virtual deslizante. Deste modo, o respeito que devemos conferir a essa arte, com sua real imagem e sonoridade, é a chave para o entendimento dos caminhos da música. O vídeo abaixo esclarece e mostra o que os transeuntes viram e ouviram como realidade musical - uma agradável surpresa de uma realidade pouco disseminada e escamoteada, escondida de um público pouco acostumado à realidade instrumental-musical.

As musas evocam o passado e os caminhos

Desde a antiguidade, acreditava-se que a música era cantada principalmente através das musas. Elas cantavam para atender uma gama de objetivos, diretrizes. O quadro abaixo revela suas funções:

A-MÚSICA-TE-CONDUZ-A-ALGUM-LUGAR 

> Clique nos links e saiba mais sobre cada musa: 
CalíopeClioEratoEuterpeMelpômenePolímniaTáliaTerpsícoreUrânia 

Por serem nove delas, cada uma era especializada em uma atividade. Sendo filhas de Zeus e Mnemosine (deusa da memória) as musas herdaram principalmente o objetivo fundamental de fazer lembrar o mundo não instantâneo. Todavia, o mundo que passou foi cantado através da lembrança, da memória de seus cantos. Quando se ouve uma música, ela representa algum estado anterior, remetendo alhures à lembrança de algo, de algum feito ou de alguma situação passada. No entanto, uma percepção que nos remeta a um evento sensorial “a priori”, não está descartada. Esta não poderá, consequentemente, remeter ao futuro, pois este existirá só quando ele acontecer. Por isso, a música, é memória, passado (pois é filha da deusa Mnemosine, deusa da memória). O passado é referência para o que é composto no presente. Sempre existirá alguma intenção do compositor com o olhar na tradição (no caso de inspirações da música folclórica e popular), que foi o caso de Villa-Lobos e Béla Bártok e muitos outros.

Esse caminho proposto pelas musas é um caminho histórico. Ouvimos nossas experiências e caminhamos com elas quase sempre retornando o passado. Se nos remeterem às imagens de caminhos nos sonhos, também estas são construídas a partir de imagens da experiência que não são “a priori”, como afirmou Kant.

O deslocamento e os dois caminhos

Um dos principais atributos da música é o que ela pode provocar nos seres humanos: fazê-los se deslocar. O deslocamento mais óbvio se dará na dança. Contudo, movimentos silenciosos no cérebro estarão sempre presentes quando estivermos impossibilitados de dançar. A dança é uma resposta instintiva humana. Nietzsche disse: “Aqueles que dançavam foram tidos como loucos por aqueles que não conseguiam ouvir a música”. Independentemente de poder ser elaborada nos balés, como em projeto de orquesógrafos (os que cuidam de elaborar os movimentos da dança), também poderá ser um movimento espontâneo do corpo quando ouvir algo que nos toca. A música é tocada por instrumentos e nos “toca” também - é a resposta fisiológica instintiva do homem frente às sonoridades musicais. Só dançaremos se a música possuir um mínimo de elaboração dentro dos padrões criativos humanos. Sons naturais, como uma série de trovões ou panelas caindo no chão, dificilmente nos fará dançar sob estes eventos sonoros. Consequentemente, a música possui como resposta humana dois caminhos nos eventos musicais: o primeiro, uma dança corporal; o segundo, uma dança “interna” na qual a alma se movimentará produzindo um deslocamento. Se a música produz movimento, através dessa dança, fatalmente produzirá deslocamento, que poderá ser também de dois tipos: um “espacial” (onde a arquitetura e o urbanismo farão parte integrante desse deslocamento) e um “mental” onde a alma “baila”. Se a música, então, produz esses deslocamentos levará indubitavelmente o “ser humano” a algum lugar.

Que lugar é este?

Na dança, o espaço em que se dá o movimento estará possivelmente confinado ao espaço real, a um salão ou um palco. No bailar interno da alma, que é nossa curiosidade, o ser poderá estar indo a regiões onde a metafísica flutua. Não haverá limites para a imaginação quando os olhos estiverem fechados ouvindo Beethoven ou Bach. Alguns períodos da música fizeram deste lugar um céu terreno humano. O canto gregoriano da Idade Média, introspectivo e que provoca imenso respeito, elevou o homem devoto a ascender aos céus quando contemplava, ouvindo a “melodia monódica” com o baixo pedal.

Nesta modalidade musical, uma procissão de clérigos entrava pela sacra arquitetura gótica, cantando no lugar santo dos retábulos laterais e do altar mor. Nos devaneios e inebriantes melodias modais gregorianas, os fiéis comungavam do futuro lugar na desejada plenitude - este lugar que pode não ser espacial. Quem o afirmará? As dimensões celestes são mistérios, contudo, desvelam-se metafisicamente na música, principalmente na de Bach. Também o são nossos pensamentos que nos levam a todo lugar, nos sonhos, nas vigílias pensantes quando ouvimos as cantatas bachianas.

(Apresentação com instrumentos originais barrocos)

A música é também matemática, pitagórica, suas proporções nos remetem ao mundo dos números. Ela nos remete também ao mundo da dor de Édipo cantado pelo coro trágico sofocliano de sátiros, através do “pathos”. Melhor fora em tão difícil empreita deixar de ouvir, pois os lugares poderiam ser inóspitos e perigosos. A música carrega essa via, estrada para o “pathos”, estrada da paixão, da dor, da perda. Uma bela frase de Nietzsche: “A música oferece às paixões o meio de obter prazer delas”. A “Paixão segundo São Mateus” de Bach, nos leva ao calvário, ao martírio, sofremos juntos, aos pés do Messias, sem podermos salvá-lo.

(Apresentação com instrumentos originais barrocos)

Esta música de Bach nos leva ao lugar de Jerusalém, do Gólgota, lugar da caveira, da cena em cruz, lugar do “sumum suplicium”. Como poderia não nos levar lá? Como impedir? Só cessando a música que leva e conduz, que nos coloca frente à crucificação do messias. Alguns não creem, mas, se ouvirem Bach, dificilmente não deixarão de crer que esse lugar existiu, pois as composições revelam lugares, plenitude, o alvoroço em ser e estar, anulando o “absurdo” da vida. A música te leva a algum lugar, a lugares talvez “desacreditados”, mas o fato é que os compositores transformam e ordenam uma sequência de notas agrupadas, criando uma harmonia, projetando uma imagem nas mentes de todos, inclusive de quem não acredita nas cenas que propõe. A cena dinâmica surge. É o suficiente para acreditarmos num lugar, o nosso lugar que não é o mesmo do outro, nem do compositor. O lugar é nosso, é privativo, arquitetonicamente pessoal. Edward Hanslick pode estar com a razão quando diz que a música não é sinestésica (a música que produz imagens ou incita outros sentidos). Podemos inferir e dar-lhe crédito quando ela não produz imagens, contudo, produz movimento e te leva a algum lugar, nem que seja a um negro infinito, a um profundo umbral, no nada, ao vocábulo “nonada” palavra que inicia o romance, “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.

O compasso, com-o-passo, o andar

A música escrita é ordenada pelos compassos. Por mais de vanguarda que seja, por exemplo, na música atonal, haverá a marcação do tempo no compasso escrito logo após a clave usada na partitura. Exceções à regra, podemos citar os “Preludes non mesure” de |Louis Couperin, mas mesmo assim o ritmo estará resguardado.

(Na partitura mostrada no vídeo observamos a existência das claves, mas não do compasso e a unidade de tempo)

A etimologia da palavra “compasso” nos explica que ela se divide em duas partes, “com” que é “com” mesmo, e “passo”, passos do andar humano. Primitivamente, esta palavra previa medições de distâncias. O próprio compasso, instrumento usado nos desenhos geométricos e nos desenhos de arquitetura, mede e constrói desenhos gráficos espaciais. Na música, ele dá o passo para que se efetue o deslocamento da obra musical. A música anda para frente com os passos, se deslocando. Este é o sentido ontológico da música - um deslocamento que te leva a algum lugar. A própria partitura anuncia e revela através do compasso esse deslocamento, uma certeza de andar enquanto o tempo passa, havendo infinitos deslocamentos.

O lugar que escolhemos

Não importa o lugar; para cima, para baixo, para os lados, dançando com o corpo ou com a mente. Não importa para onde, por que, nem para que. A música ao ser ouvida te levará a lugares não repetidos, criará possivelmente imagens que nem o compositor pensou que criaria. A cena de um palco, uma pintura, uma fotografia de Sevilla na Espanha poderá te induzir a estar lá. Quase certamente também se você ouvir a mesma “Sevilla”, de Isaac Albeniz, poderá andar por estas ruas, se não as conheceu. Todavia, seria a sua “Sevilla”.

Os clarins anunciam a entrada do convidado de um rei. É você, agora nesse lugar que escolheu para se assenhorear da música que ouviu - uma espécie de Pasárgada, de Manuel Bandeira. Você é soberano nele, nesse reino, o da liberdade em estar onde quer, ouvindo a música que quer, vagueando nesse lugar de neblina matutina, um pensamento embaçado, real na sua razão. Essa é a liberdade que a música proporciona, mesmo querendo arbitrar um lugar específico. Você desobedece! Contudo, se desejar concordar com o compositor, aceite o convite de sua dança metafísica e o deixe levar aos caminhos e lugares que prescreveu. Aceite as notas musicais dele, essas notas escritas parecidas com pingos de chuva anotados nas cinco linhas do pentagrama. Numa tempestade de notas, numa profusão harmônica, você poderá entender a tempestuosa mente de um Bach e Villa-Lobos que caminharam naquele lugar virgem, antes de você. Como bandeirantes destemidos esses compositores encontraram vales, rios, campos, lugares santos, lugares eternos, civilizações raras, inventaram o que não existia para te oferecer uma visão e um sentimento ímpar. Um obrigado não é o suficiente para agradecer a esses inventores de lugares e de caminhos nunca dantes navegados, por mares, por terras inóspitas, mas agradáveis, porque nos abrem os ouvidos e olhos - são navegações musicais, num mar revolto, de expedições camonianas. O choro e o lamento de Orfeu ainda ecoam nas borbulhantes corredeiras... - Esse lugar de águas, de lágrimas que se confundem com as águas tumulares orfeicas. Navegamos na música, o movimento do barco nos desequilibra, dançamos uma dança do espírito e da mente. Vem o sorriso, vem o choro, de todos os lugares. Todos os lamentos são sugeridos, todo o sofrimento é requisitado pelas tragédias, todo o acalanto das “berceuses” nos remonta à nossa infância, todos os risos também estão na alegria da “Aleluia” de Handel.

As trombetas tocam, entramos pelo tapete vermelho, é mais uma coroação, um novo reino, de um país que não é terrestre que fenecerá quando a música cessar e só reaparecerá quando quisermos ou quando novamente ouvirmos a santa música num delicioso e esperado retorno, um eterno retorno dos ritornelos. Finalizamos com uma última frase de Nietzsche: “Sem a música, a vida não teria sentido”. 

________________________________________________________

Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

Seja o primeiro a comentar

×

×

×