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Inovações Assustam e Incomodam

Proibições e relaxamentos na música

O rock talvez seja mais conservador do que muitas instituições que preservam sua própria tradição

Música  –  26/10/2020 19:26

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(Foto Ilustrativa)

Proibir ou não proibir, eis a questão! A questão maior é o proibir de maneira “velada”, abscôndita, quando não se permite, por exemplo, corriqueiramente, que uma flauta doce se apresente numa banda de “death metal”

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi 

Algumas recomendações, privações e até proibições que devem ser seguidas, de maneira geral na vida humana, podem soar como um convite a participar ou não de um determinado grupo social. Nosso foco é a música. Vejamos um exemplo hipotético: um grupo de rock precisa ser formado. A pessoa que vai formá-lo tem um amigo músico que ele gostaria de convidar, no entanto, o instrumento que esse convidado toca é a flauta doce. Sabendo que não é muito recomendável a participação desse instrumento num grupo de rock, esse amigo terá poucas chances de participar da banda. 

O que impede, então, que um instrumento, uma forma de composição ou até uma voz seja impedida de participar ou de ser “silenciado”?

Uma grande voz como instituída pela sociedade, autoritária, soberba, até de pouco conhecimento, não extemporânea, poderá determinar esse silêncio. Geralmente, um grupo se forma para decidir o fim ou a morte de um instrumento ou de um tipo de voz naquele nicho ou mesmo seu “banimento”. Ah! A guitarra estridente é muito bem vinda ao rock, aliada à sua distorção ensurdecedora. O baterista tem uma pegada forte, mas ele é muito barulhento: - Vamos colocá-lo num aquário de vidro, todavia, não vamos bani-lo. Todos esses roqueiros, com seus típicos instrumentos, estão convidados para essa festa que celebra a dinamite, o estoura ouvido, o que provoca a surdez. Entretanto, uma permeação surda fez penetrar a guitarra elétrica em algumas participações orquestrais onde são tocadas a música popular de cinema e a música popular brasileira: o inverso é bem mais incomum. No entanto, não se vê, obstinadamente, oboés ou um corne inglês participando de grupos de rock. Os Beatles de maneira genial usaram um quarteto de cordas em “Eleanor Rigby” - uma permissão elegante e respeito aos instrumentos de orquestra.

As inovações assustam e incomodam o que está pré-estabelecido. Por isso mesmo, até o estilo do rock de maneira geral, todavia com algumas exceções, repele, evita, silencia instrumentos que não coadunam com seu perfil moderno, contemporâneo. A própria e verdadeira atitude proibitiva do contemporâneo na música de hoje é o mesmo que proibiu determinados instrumentos e vozes em outras épocas, contudo, por vias diferentes. Uma via é o de não tolerar momentaneamente. A outra, por preservar a tradição, não aceitando mudanças bruscas, inovações repentinas individuais, desmanchar o que foi construído com tanto esforço, enfim, acalmar os ânimos da avalanche de ideias e mudanças dos compositores que procuram sempre o novo, almejando um “progresso teórico”: é o caso de algumas bulas emitidas pela igreja, mas sempre no intuito de frear o desvario. 

A bula que freou Léonin e Pérotin

A bula “Docta Sanctorum Patrum” foi emitida pelo papa João XXII em 1322. Proibiu alguns avanços promovidos pela escola de Notre Dame, a qual tinha como expoentes: Léonin e Pérotin. Inevitavelmente, a música se desenvolve principalmente na igreja onde ela recebe mais atenção e respeito. Novas expressões são sempre incorporadas, pois sendo a música metafísica, seus limites são etéreos e barreiras não podem contê-la. Assim o “discanto” que distorceu o canto gregoriano de forma melismática foi também acompanhado de outras vozes na polifonia que o sucedeu. O hoquetus foi proibido “na douta autoridade dos santos padres”, assim diz um trecho da bula: “Entremeiam, ainda, as melodias com hoquetus, infestam-nas com discantes, intercalam-nas frequentemente com triplum e motetos vulgares”. Continua a bula no desejo de corrigir esses avanços e bruscas mudanças: “Faz tempo que nós e os nossos Irmãos percebemos a necessidade de isso ser corrigido, banido e mesmo descartado, e mais eficazmente nos apressamos a eliminá-lo da própria Igreja de Deus”.

Segurar os avanços da arte, na música, é como tentar segurar o vento. Disseram os que proibiam e aconselhavam: que tudo já estava apaziguado. Contudo, os compositores medievais, tanto da “Ars Antiqua”, quanto da embrionária “Ars Nova”, já estavam mudando o que estava serenamente estável com o canto gregoriano. A voz que não podia calar dizia: sossega Pérotin!  A bula alerta sobre esse e outros gênios que não sossegam e subvertem o código estabelecido pelo papa Gregório I. Aqui, mais um trecho da bula aponta os gênios que alteram o que estava sossegado pela tradição do canto gregoriano: “Mas há alguns discípulos de uma nova escola que, atentando somente na medida do tempo, ocupam-se com notas novas, mais preferindo forjar as suas notas do que cantar as antigas”.

Proibir ou não proibir, eis a questão! A questão maior é o proibir de maneira “velada”, abscôndita, quando não se permite, por exemplo, corriqueiramente, que uma flauta doce se apresente numa banda de “death metal” porque é um instrumento antigo, talvez até cafona aos seus olhos, porém rejeitado quase unanimemente talvez por suas qualidades excepcionais de sutileza e docilidade. O rock talvez seja “mais conservador” do que muitas instituições que preservam sua própria tradição. Essas, preventivamente dosam a evolução da forma acelerada, de um desregramento audaz e inusitado como a “Ars Nova”, porém, num movimento gradual de proibição e relaxamento através das épocas que culmina no relaxamento do Concílio Vaticano II de 1965, quando esse concedeu à música ares de mais liberdade.

Contudo, felizmente, inalteradamente, ironicamente, estamos a salvo nos bares onde se toca o violão e o “cajon” que acompanham duas vozes em dueto numa longa tradição trovadoresca, medieval, praticamente inalterada, como na voz dos goliardos e menestréis. Igualmente estão a salvo de mudanças, a música no acampamento onde se embrenharam jovens nos ermos, à luz da lua com o violão e a voz que acompanham a canção chefe: “Canteiros”, do compositor Fagner (até imitam sua voz num sotaque cearense). É isso o que eu chamo de tradição e respeito à conservação da música sem que se modifiquem as composições populares estagnadas, quase em caráter modal. Os gregos se orgulhariam desse respeito! Porém, desafortunadamente, alguém trouxe clandestinamente um acordeão e o dedilhou. Os jovens se afastaram com deboches e risos. Voltaram para suas tendas, seus tabernáculos. O jovem acordeonista, já só, entoou “Saudade do Matão” - chorou lágrimas de saudade de seu avô que tocou o mesmo fole.

A noite esfriou. O acordeão foi deixado só pela juventude. Dentro das tendas nenhuma prece foi ouvida antes de dormir. Mas a noite não se calou, nem se calou a polifonia permitida após algumas décadas pela própria igreja. Um som veio de longe invadindo os tabernáculos - era a execução da missa de Guillame Machaut, infestada de hoquetus, “discantus” e uma polifonia que confundia o texto sacro que vinha de um mosteiro ali por perto.

 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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