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Quantidade Infinita

Variações na música, o desvio na liberdade

Tanto no jazz, como na bossa nova, no choro brasileiro, no rock, as variações sobre o tema principal são o movimento do músico criativo em sua plena liberdade em desfigurar o tema principal

Música  –  08/04/2021 18:17

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(Foto Ilustrativa)

Uma frase de efeito de Sartre serve tanto para o humano ao qual ele se dedicou quanto para o músico que adora o improviso: “O homem está condenado a ser livre” 

 

> Confira todas as colunas "Descobrindo a Música", do músico (e arquiteto) Ricardo Yabrudi 

Onde o “tema” musical se instala a vontade que está instalada no mundo da música cria tanto no compositor como no intérprete, quando o estilo permite, uma quantidade infinita de variações: isso é a liberdade! 

O tema é sempre muito simples, singelo, límpido, horizontal. O humano complica o que está muito quieto e o perturba, provocando sempre uma luta, um jogo despretensioso, uma brincadeira em fuga. 

Tanto no jazz, como na bossa nova, no choro brasileiro, no rock, as variações sobre o tema principal são o movimento do músico criativo em sua plena liberdade em desfigurar o tema principal. O solo de guitarra geralmente no meio da canção é, por exemplo, o mais nítido que podemos deslumbrar.

Entretanto, variações encobertas e menos divulgadas para o público mais comum são a coqueluche e o deleite dos aficionados pelas variações musicais do tema principal: o jazz, a música barroca e o próprio choro brasileiro esquecido das pop-mídias. 

Não é de hoje que se percebem as variações. Elas não são o fruto que nasceu do pé da árvore da música do século XX, todavia, já na Grécia antiga e em Roma, com o imperador Nero, já se ouvia esses improvisos. Houve improvisação na Idade Média e timidamente na Renascença. Entretanto, neste período intermediário entre a Idade Média e o Barroco, um tratado de improvisação foi compilado por Diego Ortiz - o “Trattado de Glosas”. Nele o teórico expõe o passo a passo para que o músico-leitor aprenda como criar as variações que vão se dificultando até culminar em variações ultrarrápidas. Finalmente, propõe que a última e possível variação mostre o tema principal quase como irreconhecível, dilacerado e praticamente sem feição. 

Contudo, foi na época Barroca que a variação dos temas ganhou um impulso maior. O músico desse período estaria valorizado na medida em que pudesse improvisar dentro das obras musicais como: sonatas, suítes e mesmo nos concertos com as cadenzas (momento em que o instrumento solo toca as variações sem o acompanhamento da orquestra). Van Eyck, holandês, cego, compôs e escreveu uma infinidade de variações para temas conhecidos, para flauta doce: 

  

No período que se seguiu, a improvisação perdeu um pouco do impulso com os compositores que se seguiram, como Mozart, Haydn, Beethoven, quando preferiram escrever as variações dos temas e não improvisá-las, escrevendo inclusive as cadenzas, que eram improvisadas no estilo anterior, o barroco. 

A própria composição dos impressionistas, como Ravel e Debussy, possui o perfume das variações. 

Finalmente, foi no século XX em que a proliferação da música fomentada pelo rádio, em primeira instância e no cinema, a reboque, que a música popular voltou aos ares barrocos. O jazz como expressão máxima do improviso nos deixou o maior legado da improvisação. O jazz raiz desfigurou os temas bem à moda do que seu conselheiro renascentista Diego Ortiz propôs. 

O excesso de liberdade faz com que se desfigure a face do tema. Quando variamos até a vontade individual humana, que é filha da vontade universal proposta por Schopenhauer, nos desvia do que está selado pelas moiras (as deusas do destino da antiga Grécia), aquelas que não permitem variação na vida, mas um estreito e objetivo viver ao que está estabelecido pela vontade dos deuses. O nosso destino, como o da música, está em nossas mãos. Variamos as músicas com seus temas, como também nossos destinos, que são temas da vida pelas variações possíveis que experimentamos todos os dias. Contudo, essas variações, no humano, por mais aberrantes, fugidias, quiméricas, desfiguradas, como tentativas de liberdade, ainda possuirão as âncoras que nos prendem ao fundo de um oceano, retardando a pulsão de vida freudiana. Seria como navegar à deriva com a âncora arrastada nas areias profundas desse mar. Uma frase de efeito de Sartre serve tanto para o humano ao qual ele se dedicou quanto para o músico que adora o improviso: “O homem está condenado a ser livre”! 

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Por Ricardo Yabrudi  –  yabrudisom@hotmail.com

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