(Foto: Thereza Monteleone)
Bairro tem alma e é mágico por uma série
de combinações inusitadas
Que todo mundo amou “Midnight in Paris”, de Woody Allen, não é nenhuma novidade. Um filme que nos faz querer entrar na tela e voltar para a Paris dos anos 20 para poder encontrar personalidades geniais como um Hemingway ou um Fitzgerald num café qualquer e ter a companhia deles pela noite adentro. Mas o mais curioso é fazer uma viagem pela madrugada de Ipanema, a meu ver, um dos bairros mais ecléticos e cosmopolitas da Cidade Maravilhosa, que mistura cidadãos da comunidade e da Vieira Souto nas areias do Arpoador ao Posto 10, pois, de biquíni, todos somos iguais.
Uma localidade que pode se dar ao luxo de ter uma “rua grifada” como a Garcia D’Ávila, como nos “jardins suspensos” de São Paulo, e onde se encontra a única Louis Vuitton do cobiçado balneário. E ao mesmo tempo ter personagens como a Mulher de Branco, que agora só anda de azul, depois que sua casa foi vendida. Deve rolar uma relação entre as cores. E ainda mais, duas comunidades, Cantagalo e Pavão, que convivem pacificamente (numa política da boa vizinhança) com a high society da área.
Eu, por exemplo, sou cidadã do reino de Ipanema e sua mais feliz e fiel súdita, há mais de 13 anos. E acredito que já deve contar uns dez anos que eu encontro sempre o mesmo rapaz de olhos azuis no mesmo bat local, sem nunca termos trocado nem mesmo um único olá. E ele também me vê. Coisas do bairro. Ipanema não é uma província como a Gávea, onde todos se conhecem. Nem um lugar tão familiar como o Leblon. Ou terra de ninguém como uma Copacabana.
Ipanema tem alma e personalidade!
E tem loucos pelas ruas, que não conseguem sair do bairro. Acho que Ipanema ainda é a única conexão de muitos deles com a realidade. E pude descobrir, muito recentemente, que existe um “submundo” de pessoas na faixa dos 50 anos que não devem ter voltado de “Woodstock” até hoje, e que vivem às margens da sociedade ipanemense, se é que esta palavra existe. E não estou me referindo à galera das comunidades que trabalha, estuda, pega ônibus e van, faz crediário nas Casas Bahia. Pessoas que não frequentam a Capricciosa nem o Gero e nem balançam seus corpinhos curtidos pelo sol nem pagam R$ 8 mais 13% de consumação por uma Stellinha no Londra. E que muito menos se sentam à mesa do Astor ou vão pedir a saideira no Studio RJ.
Nenhum deles tem um trabalho fixo. Nem sabem o que isso pode significar. E são todos “bem nascidos”. Contam com a herança dos pais, que já devem se encontrar na casa dos 80, 90 e por aí vai. E que frequentam sempre os mesmos pés sujos e inchados e racham a conta no fim da noite, após terem se esquecido do dia ao tomar umas 26 garrafas de cerveja. Para eles, todos os points de Ipanema não lhes dizem nada. É como se nem morassem num dos bairros mais caros do país. Parecem não possuir anseios de consumo. As angústias são deixadas na mesa do bar a cada dia que passa. Mas nunca se livram delas, pois elas os acompanham no caminho de casa. Vivem de bicos, seus escritórios são os botequins e as bancas de jornal. Parecem até bicheiros. Mas não são. São pessoas que não fazem parte de um mundo contemporâneo em que o ter está sempre acima do ser. Ter casa com projeto de arquitetura, ter máquina de café expresso, ter a viagem para Nova York, ter o carro do ano, ter status.
Quais são suas angústias?
Muitas. Problemas sérios de relacionamento, problemas para se inserir na realidade. Mas quem não sofre com as mesmas questões que atire a primeira pedra. Em compensação, nesta viagem, como uma antropóloga de Ipanema, pude também conhecer pessoas que falam a verdade e o que vem à cabeça sem rodeios nem censuras. Que mal me conheciam, pois nunca tinham me visto nem tão magra ou gorda (com exceção do rapaz dos belos olhos azuis), mas que me contaram coisas das suas vidas mundanas que eu jamais ousaria ouvir de muitos dos meus amigos de infância do meu universo burguês. Nem em 25 anos de convivência. Como se o mais importante para eles fosse falar. E fazer algum tipo de conexão com aquela forasteira que tinha ousado se aproximar.
Voltando ao “Midnight in Paris”, não me deparei com artistas nem gênios na minha viagem numa madrugada de sábado por uma Ipanema que não conhecia e que está na minha esquina, debaixo do meu nariz. Mas pude ter um estranho prazer de ter um encontro com pessoas que ainda têm alma, assim como o bairro, que é mágico por todas essas combinações inusitadas.