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Romance

Passado envelhecido (5)

Eu não era feliz, nem queria ser, não daquela forma, sei lá o que queria, mas não era aquilo, e ainda não é

Colunistas  –  18/01/2020 18:51

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(Foto Ilustrativa)

Por que não veio mais aqui em casa? E por que diabos não me ligou mais?

 

Fazia uma semana que não a via, tinha sido essa minha decisão, nunca mais vê-la, tornaria Dóris um hematoma, que desaparece aos poucos, doendo cada vez menos. Voltaria a escrever, só isso. Mas naquela tarde de domingo, enquanto tentava rabiscar algumas coisas no caderno, o telefone tocou, só podia ser ela: 

- Alô - atendi.
- Por que não veio mais aqui em casa? E por que diabos não me ligou mais?
- Não sei.
- Não sabe? Você está sendo igualzinho meu ex-namorado que sumiu. Aliás, está sendo pior que ele, porque mora aqui, na mesma cidade, enquanto ele voou pra Portugal pelo menos.
- Olha Dóris, não sei nada do seu ex-namorado.
- Será que pode tirar essa bunda do sofá e me encontrar na gruta?
- Não quero te ver mais.
- Por quê?
- Não sei.
- Preciso te dar algo. Vai lá às 18h.
- Me dar o quê?
- Vai lá.
- Ok. Às 18h tô lá. 

Tirei a bunda do sofá, um grande sofá-cama, um companheiro, era nele que eu dormia, bebia, comia, escrevia. A quitinete tinha dois andares, embaixo ficava o dito sofá, a TV, um forno, uma geladeira, uma pia e o banheiro. Em cima ficava uma cama de casal, um guarda-roupas e o Eduard, que nesse dia estava com uma mulher lá, discutindo alguma coisa. 

- Ei! Gritei - Tô saindo.
- Vai aonde meu querido?
- Me encontrar com Dóris.
- Precisa de ajuda? 

Desci um morro íngreme de calçamento, freando os pés. O céu me olhava e ria, pela segunda vez eu repetia o caminho por Dóris, mas seria a última vez, independente das suas pernas sacanas sempre pra fora cortejando minha alma fraca. Parei no posto de gasolina e comprei seis cervejas.
Olhei pro relógio da velha que me atendeu, faltavam cinco minutos pras seis. 

- Me vê um maço de cigarros também - falei.
- Qual deles?
- Qualquer um. 

Ela ficou pensativa, olhando pra bancada logo acima de nossas cabeças, com a mão no queixo, correndo os olhos, escolhendo o cigarro que me mataria mais rápido. Enfim retirou um e me mostrou:

- Pode ser esse?!
- Esse não - respondi.
- Então escolha um meu jovem, não sei nada dos teus vícios.
- Pode ser aquele Marlboro ali - apontei com o dedo.
- Quase que escolhi esse. Errei por pouco.
- Acredito. Escolhas e mortes cada um tem as suas. Quanto deu?
- R$ 18,75.
- Que horas são?
- 18 horas.
- Em ponto? 

Ela olhou pro seu relógio, arregalou os olhos.

- Acho que falta um ou dois minutos.
- Certo. 

Estendi uma nota de vinte reais, aguardei o troco e saí do posto, fazendo uma retrospectiva dos meus cinco meses com Dóris, e se resumia a discussões, injustiças, abstrações e basicamente nutrido de sexo, bebida e fragmentos gentis, um treco estranho, lindo por vezes, mas que devia chegar ao fim, antes que eu ou ela morresse de fome, ou sufocados, um pelo outro, matutando nós mesmos, os esquisitos da praça de alimentação, que não sabem o que comer, mas sabem o que cagar. Conheci-a por acaso, tinha ido até aquela festa pra encontrar outra mulher, mais feia, mas não encontrei. Dóris tinha um sorriso fácil, provocante, seus cabelos loiros estavam presos numa espécie de laço artesanal. Seus olhos verdes se sobressaiam diante de qualquer outro, eram magníficos, colossais. 

Usava uma blusinha azul simples, com uma calça jeans grande pras suas medidas e um tênis pobre. Encantou-me pelos movimentos sutis, sabem, aquele charme que poderia hipnotizar um rato cego.

Caminhei mais um pouco, vi policiais jogando futebol, gritando como bandidos espertos, vi velhos bêbados jogando dominó, pigarreando sonhos velhos, reduzidos a um pó alegre, contagiando-se com pedrinhas numeradas, senti um pouco de inveja, vi também casais abraçados, consumindo o domingo em membros, em calor humano, na felicidade da carne compartilhada pra todo mundo ver. Eu não era feliz, nem queria ser, não daquela forma, sei lá o que queria, mas não era aquilo, e ainda não é.

Ao chegar na gruta, passei pela entrada e caminhei uns vinte metros até me sentar num banquinho de concreto. Ela iria chegar triunfante pensei, com seus cabelos soltos, espalhando reflexos amarelos, com um rebolado garboso, com toda nossa intimidade caindo dos bolsos, com a magia que toda fêmea despeja na sombra. Abri uma cerveja, o sol estava indo embora junto com ela, e junto com Dóris. Era o ponto final, e quando seu corpo minucioso atravessou o portão, senti uma pontada de tristeza, mas eu não queria fraquejar, ela tinha algo pra me dar. Caminhava em minha direção, parecia que nunca chegaria, deslizava no chão, no infinito de nossa distância. Acendi um cigarro e traguei cinquenta vezes. Suas pernas estavam cobertas com a mesma calça do dia que nos conhecemos. Uma blusinha preta segurava os peitos. Sentou-se ao meu lado, não falou nada. Cruzou as pernas, tirou seu cigarro da bolsa, acendeu, e fumava como se eu não estivesse ali. Olhou-me um pouco nos olhos, e voltou a fumar. Eu não queria estar ali. O circo é mais atraente por fora. 

Continua... 

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Por Ramon Carlos  –  ramoncarlos@estrabismo.net

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