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A Saga de Dom Cutelo, o Filósofo

O Natal frustrado de Dom Cutelo (parte 2)

Tentei animar o Filósofo, lembrando-lhe que apesar de ser uma época um tanto deprimente era também a data do nascimento de Jesus e que não valia a pena tanta tristeza

Colunistas  –  20/01/2020 23:26

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(Foto Ilustrativa)

Ninguém conteve o choro

 

Dona Duxa, espécie de anjo da guarda de nosso Filósofo, contou-nos essa história numa pescaria de lambaris no Poço do Marimbondo, entre uma cachaça e outra, por ocasião das Festas de Reis:

Encontrei o nosso Filósofo Dom Cutelo com ares de poucos amigos e aquela testa miúda sulcada de rugas de descontentamento, sentado à sombra de uma velha aroeira. Situação completamente fora do usual, fiquei muito preocupada e quis saber do que se tratava, porque tanto aperreio.

- Diz aí, mestre Cutelo. O que há com nobre Filósofo? Que carranca é esta?
- Ara, sá moça! Tô aqui duma banda. Cismando co´a vida. Gosto nada des tar de Natar. 

Tentei animar o Filósofo, lembrando-lhe que apesar de ser uma época um tanto deprimente era também a data do nascimento de Jesus e que não valia a pena tanta tristeza. No que o Filósofo puxou aquele suspiro do mais profundo da alma e me contou a sua história.

- Sá moça, quando eu inda era um minino, o Cutelão, meu pai, que Deus o tenha, trabaiava de vaquêro pro Sô Juca Pé Feio, cê lembra né?
- Se me lembro? Me lembro dimais, sô! Foi o Cutelão que me deu a primeira cachaça, segundo ele, pra mod´um pegá resfriado e garrá na difruscera, porque eu tinha tomado uma chuvarada pras bandas do Mato da Cruz.

- Pois bão - continuou o filósofo - todo mundo sabe que o véio, além de cachaceiro, era teimoso feito mula impacada. E eu avisei ele, mas num me escutou! Sô Juca, deu nós uma cabaça de leite, para comemorá o Natar. Falei cum o véio pra amarrá a cabaça cum imbira e pindurá no ombro. Mais o véio cismô de trazê a cabaça naquela cabeçona dele. E veio fazeno uns pranos: Bão, quando chega in casa, vô manda sua mãe secá este leite e fazê uns ducinho. Vô leva lá na venda do Binidito e vendê pra ele. Com os cobre, vô comprá uma dúzia de ovo e botá pra chocá. Quando tirá os pintinho, vô vendê os franguinho e comprá uma leitioinha. Nós vai lizá ela e no finar do ano que vem, nós matamo ela e vendemo uma banda e meia pras festas de Reis. Aí eu vô comprá uma égua e botá pra cruzá com o jumento do Sô Juca, cê vai vê que burrinho bunito que ela vai tê. 

Mais suspiros e até uma lágrima furtiva eu vi nos olhos do Filósofo, quando ele encerrou sua história:

- Ah sá moça, nes raio de momento, eu gritei pro véio: Cê deix´eu montá no burrinho, pai? O véio, que num iscutô o que eu falei de marrá a cabaça, deu um grito cumigo: Sai de perto do pé desta égua, que ela te dá um coice e te mata, peste! E quando abaixô pra me dá um safanão, disiquilibrô, a cabaça caiu e eu fiquei sem meu burrinho. Tem ricurso de eu gosta des tar de Natar?

E depois dessa história foi um tal de marmanjo dar desculpas de que estava fungando porque estava “mei difrusçado” ou que havia caído “um trem no zóio”; pois ninguém conteve o choro. 

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Por Francisco Ferreira  –  francisco.ferreira2606@hotmail.com

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