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Romance

Passado envelhecido (6)

É isso que tem pra me dar? Minhas cuecas? Não teve tempo pra lavar?

Colunistas  –  27/01/2020 23:35

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(Foto Ilustrativa)

“Quenga enrustida, seu sorriso fede traição manjada. Limitada como uma serpente sem língua. Tenha filhos, gatos, mortes, cães, amantes, eu não ligo pra você mais. E se disse que te amava, devia estar bêbado ou maluco, como todo mundo!”

 

 > Continuação do texto Passado envelehecido (5)

- Então é assim? Finalmente falou após uma baforada de fumaça.
- É assim o quê? Perguntei
- Assim que acaba?
- O que você tem pra me dar?

Ergueu o tom de voz. 

- Eu não entendo como você pode ser tão volátil! Há 15 dias disseque me amava, e agora some por uma semana e não quer mais me ver?
- É simples. Meu amor é volátil e a bebida já não dá conta da nossa esquisitice.
- Do que você está falando?
- Me dá logo o que tem aí que vou embora.
- Me dá uma cerveja! 

Alcancei. Novamente nosso silêncio. Os carros passando, pessoas atravessando passarelas calculando o preço de suas vidas. Acendi mais um cigarro e fui mijar ao lado de um poste, que devagar iluminava nossa insensatez.
Voltei pro lado dela. 

- O irmão de um ex-namorado meu se jogou dessa passarela e morreu.
- Eu sei. Já me disse.
- Você não tem colhão.
- Não.
- Seu pateta.
- Estúpida.
- Colhão de plástico. 

Foi aí que começamos rir na sincronia do vento. Fui pra cima dela e dei-lhe um beijo de três minutos. Até sentir o empurrão. 

- Não, não, não. Não quero mais isso. Amanhã será a mesma coisa. Você e sua inconstância. Você é complicado Ramon, muito. Você chorou dizendo que me amava pela primeira vez e uma semana depois sumiu. Chega!
- Vai à merda então.
- Vai você ridículo.
 Piranha dos infernos.
- Corno parasita. 

Levantou-se do banquinho com a garrafa na mão, preparou o lançamento, fechei os olhos. Quando abri, ela tinha colocado a garrafa no chão e enfiava a mão dentro da bolsa, retirando o que queria com um olhar predador, furioso, das leoas atiçadas. 

- Quer saber o que tenho aqui pra ti? seu eunuco! você não tem colhão, nunca vai ter! 

Deslacrei outra cerveja e senti uma sacola batendo na minha orelha. Era preta e continha algo macio dentro. Caiu na minha frente rolando. 

- O que é isso? Perguntei - São meus colhões?
- Não. são suas cuecas sujas que estavam lá em casa.
- É isso que tem pra me dar? Minhas cuecas? Não teve tempo pra lavar? 

Disparou bufando em direção à saída da gruta, para sua nova vida, sem mim e minhas bebidas. Sem meu cheiro que ela tanto gostava, sem minhas cuecas. Recolhi a sacola e pude vê-la me dando a última olhada enquanto caminhava pro seu mundo sem Ramon. Juntei as cervejas, resolvi fazer um caminho mais longo pra casa. Pensava comigo “Quenga enrustida, seu sorriso fede traição manjada. Limitada como uma serpente sem língua. Tenha filhos, gatos, mortes, cães, amantes, eu nãoligo pra você mais. E se disse que te amava, devia estar bêbado ou maluco, como todo mundo!”. 

Agora tinha cervejas e cuecas, torcia que realmente fossem as minhas, e que eu tivesse sido o último a usar. Entrei em uma rua que não sabia o nome, mas que me levaria pra casa juntamente com outras curvas e outras ruas, pro sofá recheado de incertezas, de qualquer forma eu teria que começar escrever pra valer. Senti um certo aperto por dentro, vontade de chorar os cinco meses anteriores naqueles segundos que meus passos contavam. Dóris uma grande mulher, Dóris uma piranha, Dóris minha mulher, Dóris apenas, adeus Dóris. No relógio digital plantado como grama, com uns três metros de altura pude ver 18h33 e 20 graus. Horário e temperatura de duas mortes e dois nascimentos. Segui caminhando, contando as lixeiras, as lajotas pra cegos, pisando conforme o movimento do cavalo no xadrez. Em frente uma casa de portões fechados, um homem sentado na calçada, com os braços apoiados nos joelhos e com a cara enfiada neles. 18h36 pensei, os mesmos 20 graus e mais um homem na merda. Quando ouviu meus passos ergueu a cabeça e olhou como se eu fosse o Messias, surgindo de uma gruta, multiplicando cervejas e cuecas. 

- Hei, amigão! Ele disse quando eu já tinha dado uns passos a mais deonde estava. 
Virei-me e voltei três passos. 

- Diga - respondi.- Não tem um realzinho pra mim? 

Busquei R$ 1,25 do troco do posto. Larguei em suas mãos. 

- Obrigado - ele agradeceu - Deus te abençoe!
- Bebe? Perguntei.
- Quando tem né?! 

Dei a sacola com o resto das cervejas. 

- Ah! Obrigado - ele disse - Deus te abençoe!
- Usa cueca? Continuei.
- Uso, uso. 

Estendi a sacolinha preta. 

- Pega aqui então.
- Deus te abençoe, irmão!
- Agradeça à Santa Dóris companheiro!
- Obrigado Santa Dóris, obrigado. Dóris te abençoe irmão!
- Amém. 

Continuei contando lixeiras, lajotas pra cegos, andando conforme o movimento do cavalo no xadrez e cheguei em uma nova rótula, com outro relógio digital plantado, 18h42 e 19 graus, peguei a direita e prossegui. Tinha me livrado de muita coisa nesse dia. Já tinha ideias pra desenvolver um texto, alguma poesia quem sabe. Meu caderno aguardava, fechado em cima do sofá, despreparado pra minha caneta flamejante. Passei por uma pracinha iluminada suavemente, com brinquedos abandonados. Onde estariam as crianças ou os bêbados? Atravessei a rua e voltei à praça. Sentei num balanço, me movimentei todo sem graça. A vida era isso, um vai e vem sem graça. Desejei minhas cervejas de volta, Dóris de volta em meus braços. “Foda-se rameira!”, fui pra gangorra, mas minhas pernas eram muito grandes. 1,87m de altura, uma criança barbuda sem amigos pra brincar, sem mulher pra trepar, sem álcool pra tomar.
Pousei num balanço que roda parado, dei umas dez giradas e parei com aquilo. Voltei pro meu caminho, precisava de um trago.
Cheguei em casa, peguei uma garrafa de vinho e sentei no sofá, com as pernas relaxadas. Bebia no bico enquanto tentava escrever. No andar de cima começaram concordar e discordar, algo sobre músicas, filmes e fodas prediletas. O telefone tocou.

- Alô - falei.
- Oi Ramon.
- Oi Dóris.
- Tá aliviado?
- Aliviado do quê?
- Por não me ter mais.
- Não sei.
- Você nunca sabe de nada. Você me ama e não sabe, você me odeia e não sabe. Vai se tornar um alcoólatra e não sabe. Um pamonha sem colhão e não sabe. O que você sabe? Me diz logo!
- Não sei de nada. Vou dormir.
- Tá com mulher aí?
- Não.
- Não são nem 20 horas. Você não vai dormir. Tem mulher aí né?! 
- Tem.
- Quantas?
- Uma.
- Ah!! Eu sabia!! Seu veado! Me esquece!! 

Desligou. 

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Por Ramon Carlos  –  ramoncarlos@estrabismo.net

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