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RH

Romance

Passado envelhecido (8)

Assassino em série

Colunistas  –  23/02/2020 19:56

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(Foto Ilustrativa)

- E se por acaso um cachorro me morder? Vai rasgar? - Te morder na calçada ou no mato? - Na calçada. - Vai depender do peso do animal. - E no mato? - Qual mato? - Nesse. - Nesse não vai rasgar. - Entendi - falei. Mas não entendi. - Agora vou testar o terno.

 

> Continuação do texto Passado envelhecido (7)

- Quer vender o terno? Perguntei.
- Quero - ele respondeu.
- Quanto você quer por ele?
- R$ 350,00.
- Me diz uma coisa. Se eu cair com esse terno aqui na calçada ou dentro do mato, vai rasgar?
- Depende. Quanto você pesa?
- 82 quilos. Perdi um quilo essa noite.
- Esse terno aguenta uma queda na calçada sem danificar vestido numa pessoa de até 95 quilos. No mato até 87 quilos não rasga.
- E se eu engordar seis quilos?
- Melhor cair na calçada.
- E se eu engordar 14 quilos?
- Não caia mais.
- Costumo cair vestindo terno mais no mato. Quero testar antes de comprar. Posso vestir e cair aqui ao lado?
- Claro. 

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata. Ofereci um cigarro.

- Não fumo - ele disse.

Três minutos pela trilha até pararmos. Vesti o terno que usava enquanto ele retirou da mochila outro terno e o vestiu também.

- Quer vender esse terno? Perguntei. Gostei mais desse que está usando agora.
- Esse não vendo.
- Por quê?
- Pois sua capacidade/quilo de não danificar em uma queda na calçada ou no mato é maior.
- Qual exatamente?
- Na calçada 110 quilos. No mato até 97 quilos.
- E como você sabe dessas capacidades/quilos dos ternos?
- Acho que li na garantia.
- E se por acaso um cachorro me morder? Vai rasgar?
- Te morder na calçada ou no mato?
- Na calçada.
- Vai depender do peso do animal.
- E no mato?
- Qual mato?
- Nesse.
- Nesse não vai rasgar.
- Entendi - falei. Mas não entendi. - Agora vou testar o terno. 

Dei uns dez passos para trás enquanto ele observava.

- Vou fingir que corro de um cachorro em um daqueles matos, que segundo você a mordida acabaria com minha roupa. Quando eu chegar perto de você me jogarei no chão simulando um tombo. Se não rasgar lhe pago R$ 400,00.

Se rasgar, lhe pago R$ 350,00 independente do estado que ficar.

- Amigo, você não estaria ganhando nada com essa proposta - ele disse.

R$ 350,00 é o valor que quero dele, assim como está.

- Mas terei uma boa ideia da velocidade que posso alcançar fugindo de um cachorro, sem riscos.
- Fechado então - ele disse. 

Disparei em alta velocidade nos dez passos de distância dele, e ao invés de simular um tombo, acertei-lhe um soco direto na cara. O desgraçado saiu rolando na trilha, desmaiado, e só parou quando seu corpo mole esbarrou em uma árvore. Senti vontade de mijar e fiz isso na cara dele.

Nem reagiu. Balancei o pau e umas gotas ainda caíram sobre seus olhos.
Percebi um pequeno rasgo em seu terno, além de um botão danificado.
Ainda bem que tinha garantia. Bati sua cabeça na árvore até abrir uma fenda larga na testa. Deixei-o com seus dois ternos e fui trabalhar.
Cheguei às 8 horas em ponto, sem sangue nas mãos. Bebi um bom café.
No terceiro dia eu tinha certeza que era 7h45 da manhã, enquanto carregava um cigarro na mão direita, pensava e ia a passos apressados com minhas pernas longas ao trabalho. Chamou-me atenção um acidente envolvendo uma Kombi branca e uma bicicleta na avenida. Aparentemente ninguém se feriu. A ciclista conferia os estragos da bicicleta parada na ciclovia que separa a calçada da avenida no mundo com câimbra, justamente onde o motorista avaliava a Kombi estacionada. A lei não permite parar ali. Na Kombi não aconteceu nada, nem aranhão. Pelo que consegui ver, os pneus da bicicleta estavam vazios, as espias dos freios desconectadas e as marchas todas trocadas. A ciclista abriu sua bolsa, retirou uma garrafa e deu um gole na água, ao que me viu passando. 

- Quer comprar? Ela me perguntou rindo, apontando para a bicicleta.
- Hoje não - respondi.
- O cigarro mata - ela disse.
- Assim como as Kombis. 

Segui em linha reta na calçada que delimita a entrada no matagal. Um homem de terno com uma mochila nas costas e fones nos ouvidos fez sinais que sugeriam para eu ouvi-lo. 

- O que aconteceu ali? Perguntou.
- Nada demais - respondi.
- Sabe de alguém que queira comprar um terno? Tenho um aqui na mochila para vender.
- Aquele motorista da Kombi branca - eu disse.
- Vou falar com ele. Agradeceu a informação e recolocou os fones de ouvido. 

Logo atrás do homem vinha uma velhinha sorrindo, segurando um pote cheio de terra com um girassol plantado nele. Não perdi tempo, velhos morrem facilmente. Fui em direção a ela esboçando um sorriso cativante e terno ao mesmo tempo. Queria passar essa combinação. Ela parou e sorriu mais ainda, mas era uma combinação que não consegui decifrar.

- Quer vender o girassol?
- Quero - ela respondeu e mudou a combinação do sorriso. Aquilo não me atrapalhava.
- Quanto a senhora quer por ele?
- R$ 50,00.
- Antes me diga uma coisa. Esse girassol gira mais rápido na calçada ou no mato?
- Conforme o Sol.
- E quando chove?
- Na calçada ou no mato?
- Na calçada.
- Gira mais rápido no mato.
- E quando chove no mato?
- Gira mais rápido na calçada.
- Entendi. Faremos uma aposta. Colocaremos esse girassol aqui na calçada e depois ali no mato. Quem adivinhar em qual dos lugares ele gira mais rápido fica com ele.
- Mas ele já é meu. Eu não ganho nada com essa aposta - a velha relutou.
- Se eu perder, lhe pago os R$ 50,00 e a senhora pode ficar com a planta. Se eu ganhar, lhe pago os R$ 50,00 e fico com ele.
- Mas você não estaria ganhando nada com essa aposta - a velha disse. R$ 50,00 é o valor que quero dele agora. Paga, pega e depois você compara onde gira mais rápido.
- Dou R$ 30,00 se eu vencer a aposta.
- Assim sim - ela consentiu. - Parece justo. 

Primeiro deixamos na calçada. Ela cronometrou em seu relógio minúsculo do pulso esquerdo. Eu deveria ter tentando comprar o relógio. O negócio do girassol estava complicando minha imaginação.

Caminhamos um pouco até encontrar uma abertura na mata, ou uma trilha, tanto faz. Já era quase 8 horas, tinha que acabar logo com aquilo, estava atrasado. Havia perdido muito tempo com a Kombi, a ciclista e o homem de terno. Acelerei todo o processo e ao dar o primeiro gole no café, exatamente 8h01, a velha jazia morta com o girassol plantado na boca, girando à procura do Sol.

Teria que recomeçar do zero a cada três dias. 

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Por Ramon Carlos  –  ramoncarlos@estrabismo.net

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