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Escritor Militante

Loucura e racismo na literatura crítica de Lima Barreto

Autor contrapõe-se às teorias em que o negro e o mestiço são considerados degenerados, imputando as esses o estigma de criminosos, nocivos à sociedade e inimigos dos brancos

Colunistas  –  08/11/2021 10:54

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(Foto: Reprodução/Internet)

Lima Barreto foi uma testemunha infeliz de preceitos racistas, mas astutamente utilizou-se dessas mesmas ideias para mostrar de forma crítica que o meio, a raça e o momento histórico-político-social poderiam ilustrar o desajustamento social dos negros e mulatos, nos primeiros anos após a abolição e no início da República

 

Deve-se destacar que a literatura de um autor como Lima Barreto identifica-se com uma atitude crítica dos fatos e acontecimentos do seu tempo presente. Também se caracteriza pelas experiências concretas vividas por Lima Barreto em sua carne, isto é, tragédias e conflitos que marcaram a trajetória desse escritor em uma época na qual o grande problema da sociedade brasileira focava-se em torno do fim da escravidão e a inclusão do negro na sociedade, não mais como objeto de trabalho escravo, mas como mão de obra livre foi tratada. Questão ainda bastante prevalente e intensa em nosso hoje, embora apresentando outras problematizações, espelha a herança da época de Barreto. 

Concretamente, a abolição da escravatura não significou uma liberdade de fato dos negros e a discriminação racial se fortaleceu, amparada inclusive por teorias raciais que buscavam justificar a exclusão da população negra recém-libertada do meio social, por apresentar uma inferioridade e degenerescência natural, tornando os de raça negra ou racialmente não-pura despreparados e incapazes para o trabalho livre. 

Ressalte-se que o ideário científico da época pós-abolição e na República argumentava biologicamente os conceitos raciais que afirmavam que os negros ou não-brancos eram incapazes de se organizarem e conviverem socialmente em estado de liberdade como os brancos. A construção de uma imagem negativa do negro, do mestiço e do imigrante não-branco, corporificava a ideia de um país doente, inculto e desqualificado, podendo se tornar um obstáculo para o encaminhamento de futuros projetos para o país. Desta forma, os negros, os mestiços e os não-brancos em geral são representados como anormais. Como algo dividido entre o ser e o não ser, o degenerado, o inferior, o louco, o alcoólatra, o miserável e o vagabundo, enfim, identificações que o comprometia dentro de um quadro patológico comparativo que prenunciava o seu fracasso como pertencente a um povo ou civilização. Assevere-se que a relação entre a loucura e o racismo é denunciada por Lima Barreto quando critica as teorias que as raças ditas impuras carregavam naturalmente os genes da loucura, sendo completamente recusada qualquer forma de miscigenação, condenando os cruzamentos raciais, defendendo a purificação racial brasileira e a sua necessidade de embranquecimento. 

Essas teorias raciais, aceitas e defendidas por pensadores, médicos e alienistas eugenistas, apontavam o risco da degeneração nacional através da ameaça de adoecimento da sociedade brasileira com os cruzamentos raciais.  Assim, os impedimentos para a autoafirmação do negro na sociedade baseavam-se nessas teorias que buscavam apresentar um caráter científico  para defender que negros e mestiços tinham uma disposição biológica e racial para a ociosidade, à vagabundagem, ao alcoolismo e à desordem, o que não escapou a Lima Barreto nesta passagem do seu autobiográfico romance “Cemitério dos Vivos”, logo após a internação do personagem protagonista Vicente Mascarenhas, diga-se de passagem personificando o próprio Lima Barreto: “Todo cidadão de cor há de ser por força um malandro, e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados”. (*Barreto, 1956, p. 152) 

Lima Barreto foi uma testemunha infeliz desses preceitos racistas, mas astutamente utilizou-se dessas mesmas ideias para mostrar de forma crítica que o meio, a raça e o momento histórico-político-social, poderiam ilustrar o desajustamento social dos negros e mulatos, nos primeiros anos após a abolição e no início da República. O que o autor propõe é compreender o racismo em todo o seu contexto social e por meio dele interpelá-lo. O autor, a partir de sua literatura crítica, quer desvelar o mecanismo de “loucura racista”, que em verdade determina aos negros e mestiços um lugar de anormalidade e degeneração, visando colocá-los em situação de exclusão e banimento social. Para sobreviver e ser aceito socialmente, o negro deveria se submeter a um embranquecimento psíquico, moral e cultural, buscando regenerar-se e curar-se de sua degeneração natural. Tal situação encontra-se presente no seu personagem Isáias Caminha, um negro que busca a ascensão como jornalista e que toma a seguinte trajetória: 

Ele se casou com uma rapariga branca, como o senhor supôs. Aceito e explico por diversos motivos a) para que os filhos saíssem mais brancos que ele b) porque, devido as coisas sociais, os pais não se esmeram na educação das raparigas de cor, e não encontrou uma na altura e sua delicadeza”. (**Barreto, 1995, p.59) 

O intuito de Lima Barreto com essa personagem autobiográfica é demonstrar que alguém nas condições de Isáias pode falhar, não em virtude de suas assim ditas degenerações raciais intrínsecas, mas sim pode ser derrotado e esmagado pelo preconceito racial e social, e que buscando fugir dele,se descaracteriza e paga as consequências por esse sujeitamento. Lima Barreto quer demonstrar a existência de um vínculo claro entre raça e meio social, entretanto, refutando as teorias raciais e eugenistas, pois não seria o caso de causas biológicas determinarem a condição social, mas o sim o social que condicionaria a perpetuação das diferenças raciais. 

Em sua literatura, Lima Barreto contrapõe-se às teorias em que o negro e o mestiço são considerados degenerados e patológicos inatos, imputando as esses também o estigma de criminosos perigosos, indivíduos nocivos à sociedade e como inimigos raciais dos brancos. A temática do racismo em Lima Barreto estende-se em obras como “Vida e Morte de M.J Gonzaga de Sá”, servindo-lhe como motivo de defesa autóctone da raça. Segundo Barreto: “Eu sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, os seus negros, os seus mulatos, os seus cafuzos e os seus ‘galegos’ também”... (***Barreto, 1990, p.37) 

Penso que tal potência presente nessa literatura militante e crítica de Lima Barreto referente à atualidade de seu contexto configura-se como essencial para nosso momento presente, marcado por conflitos e questões sociais-raciais, onde os discursos e ideias eugenistas e de supremacia racial ainda ecoam em nosso meio. 

*Barreto, Lima. Cemitério dos Vivos. São Paulo: Brasiliense. 1956.
**Barreto, Lima. Recordações do Escrivão Isáias Caminha. São Paulo: Ática, 1995.
***Barreto, Lima. Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Belo Horizonte: Garnier, 1990. 

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Por Rogério Luís da Rocha Seixas  –  rogeriosrjb@gmail.com

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